(FOLHAPRESS) – “Vapes salvam vidas”, “dicas para trocar para o vape com sucesso” e “como o vape pode te ajudar a parar de fumar”. Por incrível que pareça, essas são frases encontradas nos sites oficiais do sistema público de saúde do Reino Unido.
O país adotou o uso de DEFs (Dispositivos Eletrônicos para Fumar) como estratégia de saúde pública para diminuir o número de fumantes de cigarros convencionais.
Em 2023, o governo anunciou o programa Swap to Stop (troque para parar), em que pessoas que fumam cigarro podem receber, de graça, kits de vape em postos de saúde.
A política britânica tem dois objetivos: idealmente, o vape funcionaria como método de transição para aqueles que desejam parar totalmente de fumar. No caso de quem não quer -ou não consegue- parar de fumar, o cigarro eletrônico serviria como método de redução de danos.
Para o NHS (Serviço Nacional de Saúde, na sigla em inglês), embora não haja dados sobre efeitos de longo prazo do uso de cigarros eletrônicos, é possível cravar que os dispositivos são menos prejudiciais do que a alternativa convencional.
Esse entendimento não é consenso na comunidade científica global. O Brasil, por exemplo, adota a postura contrária e renovou, por meio da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a proibição à fabricação, importação e comercialização de vapes e similares.
Ao contrário do cigarro tradicional, denunciado por seus malefícios em unanimidade global, o vape moderno, criado em 2003 e em trajetória de ascensão de consumo nos últimos anos, acumula opiniões divergentes, recomendações contraditórias, e interesses complexos.
No E-Cigarette Summit, encontro realizado em Londres, em dezembro de 2024, e que reuniu especialistas de diversos países para debater os usos e riscos do cigarro eletrônico, duas posições eram majoritárias entre os palestrantes.
De um lado, as apresentações conduzidas por pesquisadores britânicos, australianos e neo-zelandeses apresentavam uma visão positiva do vape como instrumento de redução de danos para o tabagismo. Ao mesmo tempo, os palestrantes tentavam distanciar seus estudos do lobby do fumo. Uma desconfiada pergunta era comum no início das conversas: “Você é da indústria Eu não falo com a indústria.”
Isso porque é inegável o interesse da indústria tabagista na liberalização do uso de cigarros eletrônicos. No Brasil, as empresas fazem forte lobby para tentar reverter a proibição em vigor desde 2009.
A indústria tenta argumentar pela regulamentação tanto no Executivo -em janeiro, após repercussão negativa, diretores da Anvisa cancelaram viagem que fariam à sede da BAT (British American Tobacco), no Reino Unido, a convite da empresa- quanto no Legislativo. Neste, a principal aliada é a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que apresentou projeto de lei sobre o tema e visitou uma fábrica da gigante Phillip Morris, na Itália.
A BAT, segunda maior fabricante de cigarros do mundo, investiu 30 milhões de libras para transformar uma fábrica de cigarros desativada em Southampton, na costa inglesa, em um centro de pesquisa e desenvolvimento de “produtos sem fumaça”, como cigarros eletrônicos e nicotina saborizada para uso oral.
Apesar da reticência, especialistas da academia britânica presentes no simpósio e a indústria se alinham quando o assunto é a proibição. “Tem que legalizar”, afirma Sharon Cox, pesquisadora do grupo de estudos sobre cigarro e álcool da UCL (University College London).
“Ao proibir, você empurra as pessoas para o mercado ilegal. Ao regulamentar, as pessoas têm acesso a um produto mais seguro”, afirmou ela.
No Reino Unido, para ser vendido de forma regular, o vape precisa seguir algumas normas: por exemplo, não ter mais de 20 mg de nicotina por mililitro e possuir um tanque com capacidade de apenas 2 ml de líquido.
Isso não significa que dispositivos clandestinos não sejam encontrados no mercado britânico. A polícia galesa apreendeu, no fim de dezembro de 2024, 23 mil vapes e 330 mil cigarros contrabandeados.
Além disso, estudos mostram que o caminho da troca do cigarro pelo vape não é linear. Estudo recente da UCL mostrou que a quantidade de pessoas que fuma os dois tipos de produto aumentou de 3,5% para 5,2%, ou uma a cada 20.
Outras pesquisas já demonstraram também um aumento no uso de cigarros eletrônicos por jovens e pessoas que não fumavam produtos convencionais antes -o que vai contra o objetivo da estratégia do governo britânico, que é de derrubar para 5% a população fumante no país, dos atuais 11,9%.
Agora, o país se prepara para banir os vapes descartáveis, em medida que entra em vigor em junho. O governo afirma que a medida serve para diminuir o acesso de crianças e adolescentes ao produto, embora já seja proibido vender cigarros eletrônicos para menores de 18 anos. Além disso, o vape descartável é considerado o mais prejudicial para o meio ambiente, por ser difícil de reciclar e causar acúmulo de lixo.
No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, 12,6% da população é tabagista. Apesar da proibição do cigarro eletrônico, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar do mesmo ano mostrou uma alta taxa de adolescentes de 13 a 17 anos que já experimentaram algum dispositivo do tipo. Os estudantes da rede privada do centro-oeste foram os que mais responderam ter provado, chegando a 24,3% do total.
A médica Margareth Dalcomo, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia, defende o veto da Anvisa aos DEFs. “Nós da sociedade demos um parecer muito bem fundamentado e que, inclusive, mostra o erro cometido pelo NHS”, afirma ela.
Dalcomo diz que a estratégia de facilitar o acesso a vapes como forma de combater o tabagismo é equivocada. “O que acontece é que pessoas que não fumavam começam a fumar, e estamos criando uma nova geração de dependentes de nicotina”, diz.
Outro defensor do veto é o médico sanitarista Drauzio Varella, que escreveu na Folha de S.Paulo, em janeiro, que “precisa ser muito ingênuo para cair nessa conversa de que o cigarro eletrônico ajuda a largar do fumo”.
Alguns especialistas, porém, defendem que a discussão brasileira não está esgotada. O pneumologista e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Marcelo Morales, um dos presentes no simpósio em Londres, afirma que, apesar de ver com cautela o uso dos cigarros eletrônicos, se surpreendeu com a veemência da posição inglesa.
“Quero deixar claro que acho o vape uma porcaria, e o ideal é não fumar”, afirma. “Mas estou muito surpreso com a naturalidade com que o tema é discutido pela academia britânica, e sinto que precisamos de mais dados no Brasil para esse debate.”
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