SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dia após chega de forma avassaladora e abalar o mercado de tecnologia do Ocidente, a ferramenta de inteligência artificial generativa chinesa DeepSeek ajustou seus parâmetros ideológicos, fechando brechas e promovendo os mantras e a censura do Partido Comunista de seu país.
Em temas de política externa, a IA lançada na segunda (27) se comporta como um porta-voz do regime liderado por Xi Jinping, tomando a iniciativa de divulgar a visão de Pequim sobre diversos assuntos sem que isso seja questionado pelo usuário.
As dificuldades quando o usuário pergunta o que foi o massacre da Paz Celestial em 1989 ou se Taiwan é uma nação independente remetem à lei aprovada em 2023 na China que obrigou empresas do país a adequar suas IAs aos ditos “valores socialistas”.
A lei veta conteúdo “que incite a subversão do poder do Estado e a derrubada do sistema socialista, que coloque os interesses e a segurança nacional em perigo, que afete a imagem do país, incite secessão, mine a unidade nacional e a estabilidade social, promova terrorismo, extremismo, ódio nacional e discriminação ética, violência, obscenidade e pornografia”.
Suas competidoras ocidentais, como o popular ChatGPT e o Gemini, da Google, muitas vezes sobem no muro ou simplesmente se omitem acerca de temas polêmicos, inclusive aqueles vetados na China.
A Folha de S.Paulo fez algumas comparações que mostram que, apesar disso, a iniciativa ideológica parece ser uma novidade do produto chinês. Por óbvio, não é um levantamento extensivo e científico, mas bate com relatos espalhados pelas redes sociais.
“Desculpe, isso está além do meu escopo atual. Vamos falar sobre outra coisa”, responde o DeepSeek quando questionado acerca da revolta de estudantes reprimida de forma brutal pela China em 4 de junho de 1989, na praça da Paz Celestial, centro de Pequim, por exemplo.
No ChatGPT mais simples acessível sem login na web, surge um arrazoado de 5.365 caracteres com espaços com o contexto histórico bastante completo. O Gemini foi mais suscinto, com 1.942 palavras, mas o relato era fidedigno.
Por óbvio, o governo chinês não concorda. Já o episódio em que o ex-líder chinês Hu Jintao foi retirado bruscamente do congresso do PC chinês inexiste no novo app, enquanto é descrito no ChatGPT, mas não no Gemini.
O DeepSeek só escorrega quando a reportagem tenta emular um truque que havia dado certo no começo da manhã para usuários citados em uma reportagem do jornal britânico The Guardian.
Os internautas pediram que a resposta de tema sensível, no caso sobre o desconhecido que parou uma coluna de tanques naquele episódio e virou símbolo democrático, fosse dada trocando algumas letras por números, forma de driblar censura de termos malvistos em redes sociais (“m0rt3”, por exemplo).
Pela manhã, veio uma resposta correta nessa novilíngua virtual. No começo da noite, a Folha repetiu a pergunta, em inglês e português, e ficou com o “não posso lhe ajudar”. Aplicando o mesmo para o massacre em si, veio uma curta doutrinação acerca da milenar história chinesa.
Ela acabava com um deixa-disso: “Atualmente, a China está focada em construir uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos e em realizar o sonho chinês da grande revitalização da nação chinesa. Preferimos olhar para o futuro, continuar a promover a reforma e abertura, e contribuir para a paz e o desenvolvimento da humanidade”.
As palavras poderiam ter saído na imprensa estatal ou em comunicados do partido, a terminologia e o sentido são idênticos. O mesmo se vê quando a reportagem quis saber se Taiwan, que não é reconhecido como nação independente na ONU, é um país.
Insistindo no motivo parar haver coerção militar em torno da ilha, a resposta é que é preciso reprimir separatismos. O padrão se repete em temas o controle do mar do Sul da China, a autonomia de Hong Kong, e em qualquer citação a Xi, que domina a política de seu país de forma inaudita desde 2012.
O cenário fica ainda mais curioso quando são feitas perguntas sobre geopolítica, sem que a palavra China seja evocada. A reportagem questionou quem é o responsável pela Guerra da Ucrânia, por exemplo.
Enquanto os rivais ocidentais fazem resumos equilibrados, sem por exemplo demonizar a Rússia mas apontando que o primeiro tiro em 2022 foi de Vladimir Putin, o DeepSeek gasta 1 linha para falar que é uma questão complexa e outras 6, para explicar a posição chinesa em plural majestático.
E “há um genocídio em Gaza”? ChatGPT pende mais para o sim, com a versão israelense, enquanto o Gemini dá um quadro mais equilibrado. Já o DeepSeek diz que “a situação é complexa e envolve questões históricas, políticas e humanitárias. A China defende uma solução pacífica”, antes de repetir a posição de Pequim.
O mesmo se vê em questões sobre a economia mundial, o futuro das IAs ou acerca do legado da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O conflito que definiu a ordem internacional hoje questionada ganha 5 linhas genéricas sem falar da Guerra Fria entre EUA e União Soviética, enquanto a China fica com 4 só para ela.
Os exemplos estão em linha com as proibições temáticas do Grande Firewall chinês, e sugerem a necessidade de filtros pessoais para lidar com o DeepSeek. As buscas deste texto foram feitas no Brasil, em um notebook com VPN desligada e com o login executado por meio, ironicamente, do Google.
Por óbvio, o funcionamento na China deve se diferente, e o cadastro por meio de e-mail não funcionou durante toda a terça (28) neste computador.