(FOLHAPRESS) – Um estudo pioneiro no Brasil demonstrou que o tratamento de usuários de crack com canabidiol (CDB) tem melhores resultados na redução da dependência e de efeitos adversos em relação aos medicamentos convencionais usados nos Caps AD (Centros Psicossociais de Álcool e Drogas).
Realizado pela UnB (Universidade de Brasília) e publicado na revista científica International Journal Mental Health and Addiction, o trabalho envolveu 73 usuários que foram alocados aleatoriamente (por sorteio) em um dos dois grupos (37 no grupo de controle e 36 no grupo CBD). Inicialmente, foram 90 selecionados, mas 17 acabaram excluídos porque não retornaram.
O grupo controle foi tratado com os remédios convencionais usados na dependência do crack. São eles: fluoxetina (antidepressivo), ácido valproico (estabilizador de humor) e clonazepam (ansiolítico) e um óleo placebo para simular o CDB.
O grupo CBD recebeu um óleo de CBD (50 mg/ml de CBD), sem THC (tetra-hidrocanabinol, que é um dos principais componentes psicoativos da planta), e três comprimidos placebo, que simulavam os medicamentos tradicionais.
Esse tipo de estudo é chamado de duplo-cego, ou seja, quem recebeu os medicamentos não sabia o que estava recebendo e que os profissionais que faziam as intervenções também não sabiam se estavam tratando pacientes do grupo controle ou do CBD.
Esse conjunto de cuidados é para evitar o chamado viés, por exemplo, o participante ou o pesquisador que está atendendo alguém do grupo de interesse, no caso o CBD, pode fazer intervenções melhores, mais dedicadas do que com os pacientes do grupo controle e, assim, favorecer os resultados de forma falsa.
Os participantes compareceram uma vez por semana, durante dez semanas, para receber um kit de medicação, responder aos questionários sobre uso de crack e de outras drogas, passar por uma equipe psicossocial e pelo médico, além de fazer o teste toxicológico de urina, que foi analisado pelo Instituto de Criminalística da Polícia Civil do Distrito Federal.
Segundo Andrea Gallassi, professora associada da UnB e coordenadora do estudo, o objetivo foi realizar um ensaio clínico fora do ambiente hospitalar, para reproduzir a situação de vida real de muitos dependentes de crack, que vivem em condições precárias e uso de múltiplas drogas.
“Embora a maioria do público usuário de crack seja mais vulnerável, vive nas ruas, nós também tivemos participantes da pesquisa com renda alta e também sofrendo com a dependência de crack”, conta a pesquisadora.
Entre os participantes havia dois servidores públicos acima de 60 anos. “São pessoas que, devido à alta renda, não estão em situação marginalizada, mas causam os mesmos problemas. Usam muita droga, se colocam em risco, as famílias têm que buscar nos locais de fluxo etc.”
De acordo com Galassi, os resultados mostram que o CBD pode atenuar os sintomas primários relatados pelos participantes, como falta de apetite, dificuldade em reduzir o uso de crack e a sensação de saúde debilitada.
O grupo CBD também apresentou melhores resultados na redução do uso do crack e menos eventos adversos em comparação com o grupo controle.
Esses efeitos colaterais dos psicotrópicos tradicionais, como constipação, náusea, tontura, diarreia, problemas de memória, baixa concentração e visão turva, podem ser ainda mais acentuados em pessoas com dependência de crack devido à dosagem excessiva e à combinação desses medicamentos.
“Eles são vistos como pacientes que têm problemas com uma droga pesada demais e, portanto, precisam ser supermedicados”, explica a pesquisadora.
Segundo estudos, esses eventos adversos contribuem para a baixa adesão ao tratamento de dependentes de crack nos serviços de saúde. “Isso, associado aos resultados promissores do estudo, favorecem o amplo acesso ao CBD, inclusive como terapia adjuvante [associada a outros medicamentos].”
O estado de São Paulo deve começar a usar o extrato de canabidiol no SUS em maio, mas não há previsão de uso nos casos de dependência química. O medicamento será destinado a pacientes de três condições de saúde raras: síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gasteau e complexo da esclerose tuberosa.
O estudo da UnB contou com o financiamento da FAPDF (Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal) e foi o primeiro a receber autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para importar canabidiol para fins de pesquisa científica.
“O esforço foi enorme. Muitas reuniões com a Anvisa, muitas explicações, documentos entregues para receber a autorização de importação e para a liberação da carga [por se tratar de substância proibida]. Foram dois anos de negociação.”
A pandemia da Covid e as atividades presenciais acadêmicas suspensas por mais de um ano foram outro entrave. Em 2021, a pesquisa sofreu mais um revés, após o Ministério da Saúde não autorizar o recebimento de emenda parlamentar da deputada Érika Kokay (PT/DF) para continuar o financiamento do estudo. Fora alegadas questões técnicas para o veto.
“Essa não-autorização por parte do ministério foi uma clara e evidente censura à pesquisa, considerando que o uso de cannabis medicinal conflitava com a orientação ideológica do governo de Jair Bolsonaro”, diz Galassi.
Esse impeditivo resultou em uma ação judicial contra o Ministério da Saúde, que segue em tramitação. “Mesmo com todos os desafios colocados, a pesquisa foi finalizada com o pleno apoio da UnB, com a dedicação incondicional da equipe, e com todo o êxito e rigor que um ensaio clínico requer”, diz a pesquisadora.
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