(FOLHAPRESS) – O escritor irlandês não acredita em fantasmas, mas sabe que eles existem. A certeza veio quando fez pesquisas para o livro “O Mágico”, retrato ficcional do alemão Thomas Mann, um dos maiores nomes da história da literatura.
Quando esteve em Paraty, por exemplo, Tóibín julgou ter visto o espectro de Júlia, a mãe brasileira do autor de “A Montanha Mágica”, quando sentiu o aroma de frutas tropicais. Já em Lübeck, cidade onde Mann nasceu, visitou pensões onde pressentiu as primeiras inclinações homossexuais do futuro escritor. Finalmente, em Munique, jura ter ouvido o eco dos saraus literários organizados pela velha senhora Mann.
“Não tomei nota, apenas absorvi as sensações que aqueles lugares me evocavam”, conta o irlandês que, depois de devorar três biografias sobre Thomas Mann, descobriu um homem de alma complexa.
“Fiquei fascinado com a distância entre o artista que se apresentava ao mundo -erudito, distante, sério- e a figura que ele revelava em seus diários, na qual confessa seus amores proibidos”, comenta Tóibín. Ele é autor também do romance “Brooklyn” e da biografia ficcionalizada de outro escritor que também sublimava o desejo pelos homens através de sua escrita, Henry James, em “O Mestre”.
Já em “O Mágico”, o autor irlandês cria uma ilusão para que o leitor acredite nos fatos. Sua habilidade está em costurar histórias verdadeiras com ficcionais, favorecido pelas lacunas que Mann deixou ao longo da vida. O Nobel de Literatura de 1929 foi um artista brilhante cuja vida se desenrolou quando duas guerras mundiais abalaram a Europa, o que o obrigou a se refugiar nos Estados Unidos.
Pessoalmente, Mann teve uma trajetória tumultuada. A latinidade da mãe, Júlia, contrastava com seu caráter essencialmente germânico. Nascida no Brasil, na ensolarada região de Paraty, Júlia da Silva-Bruhns foi levada aos sete anos para a sombria Lübeck, após a morte da mãe. Lá, passou a maior parte de sua vida tentando se adaptar a costumes diferentes dos que conheceu na infância. Aos 17 anos se casou com o cônsul e comerciante alemão Johann Heinrich Mann, com quem teve cinco filhos.
“Thomas era alemão no sangue, nos olhos, mas partes dele eram completamente latinas. Algo essencial nele veio de sua mãe. Em outras palavras, se seu pai tivesse se casado em Lübeck com outra família, eles não produziriam alguém como Thomas Mann”, observa Tóibín.
A ambiguidade também se refletia em sua sexualidade, pois, apesar de casado e pai de seis filhos, Mann sentia desejo por outros homens, desde os tempos de estudante até o final da vida, um artista sexualmente reprimido que não se permitiu comportar-se como desejava.
Mas espalhou indicações óbvias dos seus desejos: publicou uma novela abertamente homoerótica, “Morte em Veneza”, e deixou diários nos quais reconhecia sua atração por homens, estipulando que os cadernos só poderiam ser tornados públicos 20 anos após sua morte, o que aconteceu em 1975.
“Eu me interessei pelas suas ambiguidades, o senso de mistério envolvendo o homem notório que dava palestras, era muito fotografado e que fazia passeios tranquilos após as refeições com sua esposa versus o homem que manteve diários, absorvido em um silêncio que escondia uma vida secreta, íntima”, conta Tóibín.
“Mann realizou boa parte de sua vida erótica na observação, olhando outros gays. Não há qualquer evidência de que frequentava parques à noite ou visitava cafés em Munique. Seus desejos se realizavam por meio da imaginação, tanto em sonhos como a partir de seus olhares. Ele constantemente repreendia atos que eram aprovados apenas por seus olhos.”
Tóibín está certo de que “Morte em Veneza” não seria publicado hoje. Lançado em 1912, o romance acompanha a obsessão, que se tornará mortal, de um homem respeitado por um jovem garoto de impressionante beleza.
“Mann estava em Veneza em 1911, sabemos disso pois sua esposa Katia anotou no livro de memórias que escreveu anos depois. Na praia, ele viu esse lindo garoto. Segundo Katia, Thomas começou a olhar fixamente para o menino. Ao voltar para casa, fez o que um escritor faria: pensou sobre a forma e a estrutura para retratar uma experiência difícil pela qual passou.”
Segundo o irlandês, Mann tentou transformar o menino da história em uma figura simbólica, que representasse a beleza. “Mas, lido sob o olhar de hoje, o romance mostra um homem mais velho admirando um adolescente com luxúria, o que é inaceitável. Sua intenção era revelar, nas entrelinhas, a própria homossexualidade, mas seus leitores da época acreditavam que ele estava interessado na decadência e na beleza. O esforço frustrado colocou-o ainda mais em um estado de ocultação.”
Não foi a primeira vez que o alemão se valeu de elementos da vida real em sua ficção. “A Montanha Mágica”, por exemplo, teria nascido em 1912 quando sua mulher foi internada em um sanatório para tuberculosos em Davos, na Suíça. E diversas histórias da família foram usadas na elaboração de seu primeiro grande sucesso, o romance “Os Buddenbrook”, de 1901, narrando justamente a decadência da burguesia alemã.
“A literatura era seu barco seguro”, observa Tóibín. “Ele era um fantasma em sua própria vida, exceto quando estava no escritório. Por isso que sua obra continua sólida.”
O MÁGICO
Preço R$ 129,90 (544 págs.); R$ 44,90 (ebook)
Autoria Colm Tóibín
Editora Companhia das Letras
Tradução Christian Schwartz e Liliana Negrello