(FOLHAPRESS) – O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), teme que uma eventual vitória de Guilherme Boulos à Prefeitura da capital possa acabar com seus planos de privatizar a Sabesp, e é por isso que ele vem se empenhando tanto para que o processo de desestatização seja concluído logo.
A avaliação é do deputado estadual Emidio de Souza (PT), que coordena a Frente Parlamentar Contra a Privatização da Sabesp na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Nesta segunda (16), o governador disse que pretende enviar o projeto de lei sobre a desestatização à Alesp na terça-feira (17).
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Souza criticou o rito e os métodos que o governo vem impondo ao processo de desestatização da Sabesp -meta que Tarcísio quer transformar em marca de sua gestão.
“O resultado da capital, se o Boulos vencer a eleição, praticamente enterra o processo de privatização. Então ele [Tarcísio] quer correr para fazer tudo muito antes, de maneira açodada”, diz.
Prova de que o governo teme um “efeito Boulos”, segundo o deputado, é o decreto publicado em agosto alterando legislação sobre as chamadas Urae (Unidades Regionais de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário).
O decreto deu nova chance para que municípios aderissem às Urae. No mesmo dia, Nunes, que é aliado de Tarcísio, assinou a entrada da capital. Na prática, o movimento afrouxou o controle municipal sobre a Sabesp, abrindo caminho para a privatização da empresa.
Souza também critica o estudo que o Governo de São Paulo contratou do IFC (International Finance Corporation) para avaliar a viabilidade da desestatização.
“A cláusula do contrato também é muito estranha. É uma cláusula que prevê um valor baixo [se concluísse] pela não-privatização, R$ 8 milhões, e um valor de R$ 40 e poucos milhões se concluísse pela privatização.”
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PERGUNTA – Por quais motivos o sr. acredita que a Sabesp não deve ser privatizada
EMÍDIO DE SOUZA – Privatizar ou não privatizar não é uma questão de princípios. Empresas de serviço público, às vezes, podem ser privatizadas ou concedidas, mas tem que ter premissas. Na história das privatizações do Brasil, há uma condição que é fundamental: tem que ser empresa que não dá lucro, que tem baixa eficiência, que não presta serviço de qualidade. Nenhuma dessas condições está presente no caso da Sabesp.
A Sabesp é uma empresa extremamente lucrativa, tecnicamente super bem-situada. Seu serviço de água e esgoto está entre os melhores do país, incluindo serviços já privatizados. O preço que se cobra aqui é impressionante a diferença, comparando com lugares onde é privatizado.
Não há razão plausível para a privatização. Sem contar que água é uma mercadoria difícil de ser privatizada. É um bem essencial à vida. Então, num estado altamente urbanizado, como é São Paulo, onde as pessoas não têm acesso a outras fontes, não há razão para isso. É extremamente arriscado.
Essa história de que [a privatização] reduziria a tarifa é uma balela do Tarcísio. Tanto que o estudo que o IFC fez não conclui isso. Fala que o único jeito de baixar a tarifa da Sabesp é utilizar os recursos da própria privatização. Ou seja, pela equação econômica desenhada para o futuro da Sabesp, não se sustenta a ideia de reduzir tarifa. Usar dinheiro da privatização [para esse objetivo] é subsidiar, é o governo fazer um subsídio à tarifa que não faz hoje com ela sendo pública.
P – Em entrevista à Folha de S.Paulo, a secretária disse que o mecanismo para manter a tarifa baixa no longo prazo seria tema da segunda parte dos estudos
ES – Não, o estudo do IFC já aponta isso. Fala que teria que usar o dinheiro arrecadado [pela venda de ações]. Por quanto tempo isso? Não é uma equação que fecha.
O problema é: o Tarcísio prometeu isso para o mercado, quer entregar, mesmo sem ter justificativa. Ele quer entregar de qualquer forma.
P – Então qual motivo o sr. vê para o governo estar se empenhando tanto para privatizar?
ES – Eu vejo duas questões. Eu vejo um possível acordo dele [Tarcísio] com o mercado, oriundo da eleição [para governador]. Ou pode ser ele de olho em 2026, ou na eleição presidencial, querendo mostrar serviço para a elite econômica do país, dizendo “eu privatizo mesmo, eu sou capaz, o Dória não foi, mas eu vou entregar”.
É para ele se credenciar para um projeto político maior. Porque, Sabesp por Sabesp, realmente não há razão para se privatizar.
A história que ele conta de antecipar a universalização [do acesso ao saneamento no estado], não para de pé. Pelo marco legal, a universalização está prevista para 2033 no país. No caso de São Paulo, a Sabesp já previa para 2030, e tem todas as condições para fazer em 2029, principalmente com a chegada do PAC.
Na prática, [a privatização] não vai antecipar em nada o que já está desenhado pela Sabesp. Para mim, isso só se justifica como um agrado ao mercado ou compromisso com o mercado.
P – O IFC é um braço do Banco Mundial que tem investimentos na área de saneamento. Como o sr. enxerga essa relação, há um possível conflito de interesse?
ES – O IFC foi contratado para fazer um estudo da viabilidade econômica da privatização. Ele faz isso no mundo inteiro. Não me consta que em algum lugar o IFC concluiu pela não-privatização. É sempre a mesma coisa.
A cláusula do contrato também é muito estranha. É uma cláusula que prevê um valor baixo [se concluísse] pela não-privatização, R$ 8 milhões, e um valor de R$ 40 e poucos milhões se concluísse pela privatização.
Não é um estudo aprofundado, é muito precário inclusive. Foi de encomenda para viabilizar aquilo que o governador queria fazer.
P – De toda forma, o projeto está caminhando e o governo está se empenhando para isso. Nas conversas que o senhor tem com os municípios, qual é a temperatura Existe uma tendência maior de apoiar ou impedir?
ES – Tem muita desinformação e muito medo do que possa acontecer. Os municípios mantêm uma relação com a Sabesp hoje muito direta. A Sabesp tem escritórios nos municípios, tem sessão de manutenção, então o prefeito e o vereador tratam de forma muito direta. Numa empresa privatizada, essa relação certamente não será assim.
Outro problema é sobre o poder concedente. A nossa Constituição Federal diz que o poder concedente de água e esgoto é do município. O município determina se o serviço vai ser público ou privado.
O Tarcísio mudou essa regra por decreto. Tirando o poder concedente do município e transferindo para a Urae, que é uma coisa escabrosa. Nós entramos com uma ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental], que está no Supremo Tribunal Federal, vamos ver o resultado. Mas é flagrante a agressão à Constituição.
P – E quanto ao apoio da Alesp?
ES – A Alesp tem uma tendência governista clara. Eu acho que a Alesp não aprovará [a privatização] se houver uma pressão popular e institucional importante.
P – Acha que as greves recentes em São Paulo podem ter algum impacto nesse sentido?
ES – Na Assembleia não, mas na opinião pública, sim. Porque quem não sabia que a Sabesp estava com proposta de ser privatizada ficou sabendo.
Tarcísio deve querer apressar esse processo, o que é outra questão de mercado, porque ele teme a eleição municipal do ano que vem, principalmente na capital. O resultado da capital, se o Boulos vencer a eleição, praticamente enterra o processo de privatização. Então ele quer correr para fazer tudo muito antes, de maneira açodada.
P – O sr. acha que o Tarcísio está temendo um efeito Boulos?
ES – Não tenho dúvida. Por isso que ele assinou esse decreto antecipadamente, por isso que o prefeito de São Paulo aderiu a Urae que não havia aderido. Passou por cima de negociações que a própria prefeitura havia feito com a Sabesp de maneira mais vantajosa.
O jogo está sendo jogado. Qual vai ser o resultado disso, como a Assembleia vai se comportar, eu não sei.
Também há uma dúvida importante, sobre qual é o projeto que vai para a Assembleia. Se é uma PEC [Proposta de Emenda à Constituição] ou um projeto [de lei] comum.
Tenho ouvido falar que o Tarcísio quer mandar um projeto comum, mas a Constituição do estado é clara: o serviço de água e esgoto será prestado através da empresa pública de saneamento. Para alterar isso, só mudando a Constituição do estado.
P – Então se não chegar via PEC, vai ter que judicialização?
ES – Exatamente.
P – O sr. tem conversado com o governo federal sobre isso?
ES – Não tenho, oficialmente sobre isso, não. É uma questão muito política. O governo federal não tem como intervir numa questão que é competência do estado. O estado diz como vai fazer. Novamente, a Constituição Federal é clara nisso. São atribuições dos estados e dos municípios. Ao governo federal cabe a ingestão de recursos.
P – O calendário que o Governo de São Paulo pretende seguir é para que a privatização aconteça antes das eleições municipais de 2024. O trâmite na Alesp permite isso?
ES – Vamos supor que ele corra com o processo na Assembleia e consiga aprovar este ano. Aí tem o processo propriamente dito depois. Vai ter que escolher uma modelagem, fazer audiências públicas, respeitar um rito… O calendário para isso é muito apertado.
Então, mesmo se a Assembleia aprovar de maneira rápida, ele vai ter muito problema para tocar isso até a metade do ano que vem, que é quando o processo eleitoral se instala.
P – A adesão da capital é muito importante para que a privatização siga adiante, porque São Paulo é responsável pela maior parte da receita. Do jeito que essa adesão à Urae foi feita, um novo prefeito pode mudar?
ES – Se a privatização não tiver sido feita ainda, pode. O problema é o seguinte, se ele [Tarcísio] não viabilizar isso tudo até a metade de 2024, entra o clima eleitoral. Se ele não tiver segurança jurídica absoluta de que o negócio vai parar de pé, ele não vai [conseguir].
A segurança jurídica é o grande problema. A capital responde por 46% do faturamento da Sabesp. É muita coisa, ela desequilibra qualquer jogo. A Grande São Paulo toda representa quase 80%. A Sabesp atende 375 municípios, mas o peso dela é a Grande São Paulo.
P – Mas o que poderia acontecer com uma prefeitura que seja contra
ES – Ela pode não aderir, pode criar serviço próprio. Ela é o poder concedente, ela faz o que ela quiser. A obrigação da prefeitura hoje é com a Sabesp pública. Ela tem contrato de 20, 30 anos com a Sabesp pública. Não com a Sabesp privatizada.
O Tarcísio, na prática, está oferecendo dinheiro para os prefeitos. Está prometendo que vai investir aqui, ali. É uma barganha que ele está tentando fazer com os prefeitos, em ano pré-eleitoral. Os prefeitos querendo ter o que mostrar, e ele prometendo dar essa condição.
Ele está com esse instrumental de um lado e o nosso é o jurídico/mobilização.
P – Qual a perspectiva de que sua ala consiga vencer a do Tarcísio?
ES – Eu estou muito confiante. É uma luta que eles não têm apoio popular. Pesquisa do Datafolha, por exemplo, indicou que a maior parte das pessoas é contra a privatização, porque já tem em mente o que aconteceu no setor elétrico, nas estradas. No setor de água e esgoto, [as pessoas têm em mente] o que aconteceu no Rio de Janeiro em termos de piora na qualidade do serviço e aumento vertiginoso da tarifa.
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EMIDIO DE SOUZA, 64
Está no terceiro mandato como deputado estadual de São Paulo e atualmente coordena a Frente Parlamentar contra a privatização da Sabesp. Antes, foi prefeito de Osasco, presidente estadual do PT-SP e um dos advogados que atuou na defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
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