SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Professora de inglês, Claudiane Tormes, 49, tem deixado de lado o conteúdo de sua disciplina depois de perceber que quase metade dos alunos não consegue ler ou escrever até mesmo em português.
Ela dá aula para turmas de 6º ano do ensino fundamental de uma escola estadual na periferia de Curitiba, no Paraná. No início do ano, ela identificou que os alunos não entendiam o que estava escrito na lousa ou nas atividades e não conseguiam escrever nos cadernos. Por isso, ela passou a dedicar parte das aulas para ajudá-los na alfabetização.
Por lei, as crianças deveriam ter assegurado o direito de aprender a ler e escrever até o fim do 2º ano do ensino fundamental. O Brasil, no entanto, nunca conseguiu garantir esse direito a todas, e a presença de estudantes com a alfabetização incompleta nas turmas dos anos finais do fundamental é uma realidade enfrentada pelas escolas há anos.
A pandemia ampliou ainda mais esse problema. Os alunos que hoje estão no 6º ano estavam no 3º ano em 2020, quando a crise sanitária levou ao fechamento das escolas. Ou seja, eles ficaram sem aulas presenciais e pouco (ou nenhum) contato com os professores na série em que é esperada a consolidação do processo de alfabetização.
“Sempre tinha dois ou três alunos por turma com dificuldade, que precisavam de mais atenção e atividades adaptadas. Mas, agora, em uma sala com 30 alunos, metade não está alfabetizada. Muda toda a dinâmica, não tem como seguir com o conteúdo previsto”, diz Claudiane, que atua na rede pública há 26 anos.
Para especialistas da área, esses estudantes mais velhos, que não tiveram assegurado o direito de se alfabetizar na etapa esperada, estão “invisíveis” já que não são alvo hoje de nenhuma política pública específica.
O Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, lançado pelo governo Lula (PT) em junho, não prevê ações para os anos finais (do 6º ao 9º ano). Nas redes estaduais, as políticas de reforço escolar para essas séries também não traçam estratégias específicas para a alfabetização.
“O governo brasileiro está fazendo um grande esforço para resolver o problema da alfabetização, mas não está enxergando a situação de um grupo de crianças que está dentro da escola. Um grupo que foi muito prejudicado na pandemia, não recebeu atenção do governo na época e agora continua sem ser olhado”, diz Elaine Constant, coordenadora do LIA (Laboratório Integrado de Estudos da Alfabetização) da UFRJ.
A Folha conversou com professores de três estados e de disciplinas diferentes que relatam a dificuldade de lidar com a quantidade de alunos sem o processo de alfabetização completo.
Claudiane, por exemplo, tem apenas duas aulas por semana com as turmas de 6º ano e avalia que, mesmo voltando às atividades para esse processo, elas são insuficientes para cobrir a lacuna de aprendizado.
“As crianças não desenvolveram nem a coordenação motora necessária para escrever, elas têm dificuldade de escrever seguindo as linhas do caderno. Elas não conseguem ler palavras escritas em letra cursiva. O abismo é muito grande”, diz.
Formada em letras, Claudiane tem familiaridade com o processo de alfabetização ainda que não tenha se especializado ou atuado formalmente nessa etapa. “Para os professores de outras disciplinas é ainda mais complicado. Eles até tentam ajudar os alunos a ler e escrever, mas não têm formação para isso.”
Álvaro Dias, 44, professor de história, em uma escola estadual de Mogi das Cruzes (Grande SP), conta que tem buscado atividades de alfabetização para os seus alunos de 6º ano. “Não adianta eu chegar na sala e dar o conteúdo que a secretaria manda, se as crianças não estão acompanhando. Em uma das turmas, mais de 70% mal consegue ler o que está na lousa e copiar no caderno.”
Ele conta que tem adaptado as atividades de sua disciplina para que sejam feitas de forma oral. “Tenho poucas aulas com eles, então penso em estratégias para otimizar o tempo e para que eles aprendam alguma coisa. Se for esperar a turma toda responder por escrito um exercício, a aula não anda.”
Professora de biologia em uma escola estadual na região de Santa Cruz, no Rio, Priscila Santos, 36, diz que passou a pedir ajuda aos colegas da área de português para passar atividades de alfabetização aos alunos.
“É triste porque os alunos já têm consciência de que deveriam saber ler e escrever e ficam com vergonha. É fácil identificar aqueles que não sabem, eles se recusam a escrever e dizem ter a letra feia ou que são lentos. Na verdade, eles estão com vergonha e inseguros por não saber.”
Anna Helena Altenfelder, presidente do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação), diz que deveriam ser pensadas ações específicas para a alfabetização das crianças mais velhas, já que as condições e complexidades são diferentes.
“Alfabetizar a criança nessa idade é diferente de quando ela é novinha. Pode existir uma resistência maior por causa da insegurança e vergonha que a situação traz. Mas também tem algumas vantagens porque a criança já tem uma noção, um contato com o mundo letrado. Ela não começa do zero.”
Para ela, a ausência de políticas é injusta com estudantes e professores. “O aluno é penalizado por não ter aprendido durante uma pandemia. E o professor lida sozinho com o problema, sem ter sido formado para isso. Não podemos ter um compromisso de alfabetização que deixe de fora aqueles que não tiveram a oportunidade na etapa adequada.”
Kátia Schweickardt, secretária de Educação Básica do MEC, disse que o governo Lula precisou eleger prioridades na área educacional apesar de o diagnóstico inicial ter apontado uma série de problemas graves em todas as etapas.
“A gente precisou definir o que era mais urgente, mas não esquecemos dos anos finais do ensino fundamental. Os alunos dessa etapa vão ser mais bem atendidos com a expansão do ensino em tempo integral, que é uma das prioridades do governo.”
A secretária disse ainda que o ministério está elaborando uma política de formação para professores da educação básica, que deve contemplar estratégias de recomposição da alfabetização para estudantes dos anos finais.
Em nota, a Secretaria de Educação do Paraná disse ter lançado o Programa Mais Aprendizado, que agrupa os alunos por nível de dificuldade. A pasta disse os professores têm recebido formação para lidar com alunos que ainda tenham dificuldade de alfabetização, mas não informou quantos foram formados.
A pasta disse ainda que “disponibilizou plataformas que podem ser utilizadas pelos professores para potencializar o tempo de aprendizagem dos alunos. São aplicativos ou jogos de empresas que a pasta tem cobrado para serem usados em sala, como o Khan Academy e Quizizz.
A Secretaria de Educação do Rio informou apenas que tem o projeto Foco, de reforço escolar para alunos do 6º ao 9º ano e ensino médio, mas não disse se há ações específicas para alfabetização.
A Secretaria de Educação de São Paulo não respondeu.