Seca na Amazônia faz rio desaparecer, e ribeirinhos percorrem bancos de areia com água da cidade

 (FOLHAPRESS) – A fumaça que entra pela janelas das casas em Manaus, impregnando tudo com o cheiro de queimado por semanas seguidas, é um dos principais sintomas da seca severa que atinge a Amazônia. Assim como a decolagem de um avião às cegas, sem que os pilotos distingam o que é nuvem e o que é névoa dos incêndios.

O encolhimento agressivo de um lago -com o superaquecimento das águas, a formação de enormes bancos de areia, a limitação da navegação e a morte de animais como botos vermelhos e tucuxis- é outro símbolo da estiagem extrema na região.

Mas nada se compara ao desaparecimento de um rio no município de Tefé (AM).

A Folha de S.Paulo esteve nesta quinta-feira (12) no igarapé Paranã de Tefé -um curso d’água caudaloso em tempos normais, via de navegação para barcos lotados de passageiros rumo ao rio Solimões e habitat de botos- e constatou que ele está morto.

Já na boca do rio Tefé (ou lago Tefé, como é mais conhecido na região), onde deságua, o igarapé virou um banco de areia, superaquecida por temperaturas também extremas. O vazio percorre seu curso inteiro, passando por comunidades dependentes da abundância de água.

Restaram, para as casas com mais sorte, algum filete de água, usada para matar a sede dos animais.

Casas flutuantes já não flutuam. Motores já não bombeiam água. Sem o rio, as famílias das comunidades que o margeiam se viram sem água para consumo. O mais frequente era retirar essa água do igarapé e submetê-la a um tratamento e filtragem. Não há técnica que dê conta de tratar o filete de água carregado de sedimentos.

Uma tentativa dos moradores é captar a água da chuva -a pouca chuva que existe nos dias de uma seca que já pode ser considerada histórica na região do médio rio Solimões, onde estão cidades como Tefé e Fonte Boa.

O que é comum a todos os moradores dessas comunidades, que não têm mais um rio, é a dependência da água que sai de torneiras públicas.

A cidade de Tefé está próxima; são menos de 30 minutos pelo rio de mesmo nome, entre a boca do igarapé que não existe mais e o portinho do município. Mas as dificuldades são gigantes, mesmo num trecho curto.

Os moradores das margens do Paranã de Tefé precisam carregar nos ombros os galões e garrafas cheios de água trazidos da cidade. Eles param os barcos até onde é possível, descem por um terreno ainda umedecido -uma lama escorregadia- e adentram pela areia quente do que já foi o fundo de um rio. O percurso pode se estender por 1,5 km.

Para as casas mais próximas do lago, a busca por água na cidade já ocorria em tempos normais.

Não há caixa d’água nessas casas, nem é comum o processo de tratamento e filtragem. Nas casas mais distantes, a corrida por água em Tefé passou a ser mais frequente, em razão do desaparecimento do igarapé, assim como no próprio Solimões.

“Já são 40 dias assim. E está secando ainda”, afirma o pescador e agricultor Raimundo Bezerra de Amaral, 59. Ele tem viva na memória a seca de 2010, a pior que se tem notícia na região. “Em 2010 foi pior no sentido de não ter ficado nada de água, nem para banho. Agora a gente tem um filete, para banho e para os bichos. Mas, em 2010, foram 25 dias assim. Agora já são 40.”

O rio Tefé segue baixando. Nesta quinta, segundo medição de pesquisadores que atuam na região, a altura diminuiu 6 cm. Nos dias anteriores, vinha baixando de 10 a 15 cm por dia.

O renascimento do Paranã de Tefé, assim, pode demorar. A pesca não existe porque não tem água. As famílias ficaram dependentes da agricultura, mas o calor e a secura impedem colheitas.

“Eu planto melancia, milho, maracujá. Morre tudo. Queima tudo”, diz Amaral. “Estamos vivendo mais da criação de galinhas.”

A casa do agricultor está numa das margens do ex-rio. Uma longa escada de madeira leva ao quintal da casa, onde a água bate em tempos de cheia. Embaixo, um flutuante está atolado no banco de areia. “Minha esperança é que ele vai voltar a flutuar no começo de novembro”, afirma o agricultor.

Na comunidade São Jorge, um pouco mais adiante, na mesma margem, as dificuldades para fazer a plantação vingar são as mesmas. “A gente planta hortaliça e verdura. Com essa seca, nada prestou”, diz o agricultor José Veloso Macedo, 59. “A gente joga água e não presta. A melancia morreu toda. O que resistiu foi maxixe, feijão, banana e um pouco de cebolinha.”

A pesca ficou impossível, mesmo em outros cursos d’água. “Tá tudo tapado, a gente não pode viajar”, afirma Macedo.
Era ele que transportava os alunos para uma escola em outra comunidade. Isso já não ocorre há semanas, o barco não sai do lugar. Agora, com as aulas suspensas, o agricultor busca tarefas e entrega nas casas das crianças.

A estiagem é um ciclo na Amazônia. Vem e vai todos os anos. Os ribeirinhos sabem que o igarapé Paranã de Tefé vai renascer, mas estranham o prolongamento da seca. A realidade se estende a diversas comunidades da região.

Rios se aproximam de pontos de baixas históricas, como no alto e médio rio Solimões, no baixo rio Negro (onde está Manaus) e no rio Madeira. A estiagem é tão severa que deve impactar a próxima, de 2024, segundo pesquisadores. As chuvas estão mais escassas que em outros anos, na véspera, durante e na previsão para o pós-estiagem.

Na memória de quem testemunha e vive todos os dias a morte de um rio, vão se avolumando as lembranças de secas severas. Os intervalos entre uma e outra se encurtam.

“Outro dia deu uma chuva grande. A gente aparou a água da chuva. Melhorou mais um pouco”, diz o agricultor Macedo.

Leia Também: ‘Sem água, não tem vida’: seca na Amazônia brasileira aumenta o temor pelo futuro

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