RENAN MARRA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O fracasso do motim que em 2023 tentou derrubar a cúpula militar da Rússia pareceu colocar um ponto final na história do Grupo Wagner, organização paramilitar responsável pela rebelião e com histórico de violação dos direitos humanos em vários países. Um ano e meio após o ato, porém, o grupo mercenário, repaginado, não só mantém suas atividades como vem expandindo a atuação na África, onde é acusado de cometer massacres. Uma dessas novas frentes, segundo especialistas, ajuda a financiar a Guerra da Ucrânia.
Mercenários russos são cada vez mais presentes no Sahel, região africana ao sul do Saara assolada por uma série de golpes militares nos últimos anos e disputada por Moscou e potências do Ocidente. Em vez de tropas do Grupo Wagner, desembarcam por ali forças que se autodenominam Africa Corps, como a organização agora é conhecida.
O novo nome é motivo de calafrios devido à semelhança com a Afrika Korps, força expedicionária da Alemanha nazista que lutou no norte da África durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O rebatismo ocorreu após os mercenários serem incorporados pelo Ministério da Defesa russo, uma das consequências do motim derrotado no ano passado.
Combatentes do Wagner já atuavam em países africanos desde ao menos 2017. Nos últimos meses, mais contratos foram fechados, agora sob o guarda-chuva de Moscou.
Em janeiro, a organização russa anunciou em seu canal do Telegram a chegada de cem combatentes a Burkina Fasso. O objetivo era fornecer proteção ao capitão Ibrahim Traoré, líder do país empossado havia pouco tempo depois de comandar um golpe de Estado.
O governo burquinense historicamente evitou a interferência de agentes estrangeiros para preservar a tradição de soberania política do país. No entanto, após a nebulosa morte na queda de um avião do líder mercenário Ievguêni Prigojin, exatos dois meses após o motim fracassado, autoridades do país africano tiveram a percepção de que a organização paramilitar teria menos enfoque comercial sob o comando direto do Ministério da Defesa russo, de acordo com os analistas John Lechner e Sergey Eledinov, em artigo publicado na revista Foreign Policy.
Não é o que tem acontecido, porém. De acordo com o relatório Blood Gold Report, feito por pesquisadores que investigam a atuação de mercenários russos na África, as missões no continente têm ajudado Moscou inclusive a custear parte da Guerra da Ucrânia.
O levantamento aponta que as forças russas tinham extraído, até dezembro de 2023, ao menos US$ 2,5 bilhões (R$ 15 bilhões) em ouro na África desde que o Kremlin decidiu invadir o país vizinho, em fevereiro de 2022. Os recursos, assim, seriam uma forma de Moscou driblar os impactos de sanções internacionais decorrentes do conflito na Europa.
No começo deste ano, os combatentes da Africa Corps assumiram o controle da Intahaka, uma das maiores minas de ouro do Mali, próximo da fronteira com Burkina Fasso, que havia sido disputada durante anos por vários grupos armados que atuam na região.
Além de concessões para mineração, que reforçam a dependência do país em relação à Rússia, o pesquisador malinês Mohamed Issouf relata inúmeras violações de direitos humanos. “A crise atual em Mali é maior do que qualquer coisa que já vivemos. Militares estão em todos os lugares, e civis estão sofrendo por expressarem suas opiniões. No norte, pessoas são mortas por drones, e não existe preocupação de saberem se são inocentes ou não”, afirma.
Issouf diz que as vítimas são principalmente nômades dos grupos fulas, tuaregues e mouros, que historicamente desafiaram o poder central de Bamako, reivindicando direitos, e que lutam por independência.
Uma das ofensivas com o maior número de vítimas ocorreu na cidade de Moura, na região central do Mali, onde pelo menos 500 pessoas foram mortas, a maioria com indícios de execução, por tropas do regime e militares estrangeiros, segundo relatório do Escritório de Direitos Humanos da ONU divulgado em 2023.
O documento menciona relatos de testemunhas sobre a atuação de “homens brancos armados” que falavam um “idioma desconhecido”. As informações foram corroboradas por investigação da organização Human Rights Watch, que apontou o assassinato de vários civis por mercenários russos.
Casos semelhantes são relatados em outros países africanos, incluindo República Centro-Africana, Níger e Burkina Fasso. Para Mariana Bracks Fonseca, professora de história da África na Universidade Federal de Sergipe, a invasão da Otan na Líbia, em 2011, aumentou a instabilidade regional, o que favoreceu a atuação de grupos criminosos.
Já assolada pelos impactos da pobreza extrema, a região do Sahel passou a ser palco do jihadismo. Em sua maioria autocracias, os regimes locais precisam de ajuda externa para combater grupos radicais.
A França enviou tropas ao Mali em 2013 como parte de operação contra grupos extremistas, mas teve de retirá-las em 2022. “Houve um levante de países que estão contra esse neocolonialismo que vem principalmente da França, que foi o país que colonizou a região. Lideranças militares trazem no discurso uma ruptura com o capitalismo que é dominado pela Europa. O que não aparece é que a Rússia busca controlar esse realinhamento”, diz Fonseca.
Estimativas não oficiais indicam que o número de mercenários russos chegaria a 20 mil membros, mas o número é exagerado, segundo analistas. Em agosto, parte da Africa Korps teve de deixar Burkina Fasso para ajudar Moscou na Guerra da Ucrânia. A queda do regime de Bashar al-Assad, na Síria, também evidencia as limitações de Moscou na proteção de aliados. Antes de focar o conflito no Leste Europeu, o Kremlin havia interferido para salvar o ditador, atualmente exilado na Rússia.
Enquanto as potências movimentam suas peças no xadrez geopolítico, a crise no Sahel piora a cada dia, afirma Issouf. Segundo ele, com as atenções voltadas para os conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza, militares no poder de países africanos se aproveitam para exterminar minorias étnicas, usando a luta contra o terrorismo como justificativa.