BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – As reservas internacionais do Brasil subiram no primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e fecharam 2023 em US$ 355 bilhões, o que representa um avanço de 9,34% ante um ano antes e o nível mais alto desde março de 2022. O movimento é observado após uma queda de 13% ao longo da gestão do antecessor, Jair Bolsonaro (PL).
A alta foi puxada pelo fluxo cambial positivo -o maior desde 2012, com entrada líquida de US$ 11,49 bilhões- e pela receita obtida com juros dos títulos nos quais estão aplicadas as reservas do Brasil, em grande parte alocadas nos Treasuries (títulos do Tesouro dos Estados Unidos).
Houve também influência dos movimentos nas curvas de juros que impactaram positivamente os preços dos ativos e da menor atuação do BC no mercado de câmbio, sem a necessidade de vender dólares com compromisso de recompra. A autoridade monetária atravessou 2023 sem leilões extras de dólar pela primeira vez em 24 anos.
As reservas internacionais são os ativos do país em moeda estrangeira e funcionam como uma espécie de colchão de segurança contra choques externos, como crises cambiais ou fugas de capital, em momentos de turbulência no mercado global.
Desde 1999, o Brasil adota o regime de câmbio flutuante. Nesse modelo, o colchão de segurança ajuda a manter a funcionalidade do mercado de câmbio atenuando oscilações bruscas do real em relação ao dólar, o que dá mais previsibilidade para os agentes econômicos.
No primeiro mandato do governo Lula, teve início um processo de aquisição de reservas internacionais em meio a um cenário de grande vulnerabilidade a desvalorizações cambiais.
Em um período de duas décadas, o Brasil aumentou suas reservas em moeda estrangeira de US$ 38,77 bilhões, em 2003, para US$ 355 bilhões, em 2023. O valor máximo (US$ 388 bilhões) foi alcançado em meados de 2019, quando o Banco Central iniciou o processo mais expressivo de venda desses ativos.
O volume de reservas internacionais no Brasil é resultado da política cambial executada pelo BC, cuja autonomia operacional está em vigor desde fevereiro de 2021. Ele varia de acordo com fatores como alteração de cotas no FMI (Fundo Monetário Nacional), compra e venda de moedas, flutuações de paridades entre as moedas ante o dólar, preços de ativos e taxas de juros.
O nível adequado das reservas internacionais é motivo de discussão entre economistas e até mesmo entre órgãos públicos. Em 2020, o TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a emitir um alerta ao governo sobre o custo fiscal dos ativos em moeda estrangeira.
No Brasil, as reservas são compostas majoritariamente por aplicações em títulos governamentais (fatia correspondente a 89,71% em dezembro de 2022), mas também ouro, depósitos em moedas e outros ativos.
Na gestão de Bolsonaro, o então ministro Paulo Guedes (Economia) defendeu em diferentes momentos a venda de reservas internacionais. Em novembro de 2020, o chefe da equipe econômica disse que a medida era uma opção do governo para reduzir o endividamento público.
“A dívida tem que cair, e a maneira de fazer isso é vender ativos, privatizar, desalavancar bancos públicos, reduzir déficit interno e até vender um pouco de reservas”, afirmou Guedes na época.
A pasta chegou a avaliar, em 2022, a criação de metas para reservas internacionais, mas o plano não foi levado adiante depois de a ideia não ter sido bem recebida pelo mercado financeiro.
Para Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e economista sênior da LCA Consultores, a discussão na gestão Bolsonaro tinha um viés eleitoreiro diante de uma inflação em dois dígitos e um câmbio depreciado desde a eclosão da pandemia.
O especialista ressalta que hoje o Brasil tem um patamar significativamente mais alto do que o mínimo estimado pelo FMI como adequado para o país, correspondente a US$ 260 bilhões e que o custo fiscal dessa estratégia traz à tona opiniões divergentes no mercado sobre um eventual uso alternativo do “excesso” de reservas.
Enquanto economistas mais heterodoxos defendem que o Brasil deveria sacar parte das reservas para investir em infraestrutura ou para reduzir a dívida pública bruta -que atingiu 73,8% do PIB (R$ 8 trilhões) em novembro de 2023-, a ala mais ortodoxa teme que os recursos acabem desperdiçados em investimentos públicos sem muita governança.
“Estou no meio do caminho. Nesse sentido, a gente precisaria construir uma governança um pouco mais sólida para poder ter esse novo arranjo em que a gente pudesse, sim, dar um uso alternativo para parte das reservas, mas tentando isolar isso do ciclo político para não ter um uso eleitoreiro e populista dessas reservas”, diz.
Borges afirma que o país teria grau de investimento -concedido a quem é considerado bom pagador- se a solvência externa fosse o único critério considerado pelas agências de classificação de risco, dada a sólida capacidade de o Brasil honrar seus compromissos em moeda estrangeira.
A questão fiscal é hoje vista por especialistas como um dos entraves nessa direção.
Atualmente, as três maiores agências de classificação de risco do mundo -S&P Global Ratings, Moody’s e Fitch- colocam o país a apenas dois degraus de alcançar o grau de investimento. Nos relatórios, o nível das reservas internacionais costuma ser citado como um dos pontos fortes do país.
Em julho, a Fitch chegou a dizer em nota que “finanças externas fortes apoiam a resiliência aos choques, sustentadas por uma taxa de câmbio flexível, reservas internacionais robustas e uma posição de credor externo líquido soberano.” A agência também acrescentou que o colchão de US$ 350 bilhões cobre cerca de nove meses de pagamentos externos do Brasil.
A recomposição das reservas internacionais no Brasil ganhou um reforço em agosto de 2021, quando o FMI fez uma alocação de US$ 15 bilhões como parte da distribuição de DES (Direitos Especiais de Saque) aos países-membros.
Naquele ano, o Banco Central também buscou maior diversificação da carteira, incluindo dólar canadense e dólar australiano na alocação estratégica e aumentando a contribuição de yuan. Um ano depois, a moeda chinesa ultrapassou o euro e se tornou a segunda divisa mais importante nas reservas internacionais brasileiras, representando 5,37% do total.
Luiz Awazu, ex-diretor do BC e ex-vice-gerente-geral do BIS (Banco de Compensações Internacionais, o “banco central dos bancos centrais”), vê o recente crescimento das reservas internacionais no Brasil como parte de um movimento global nessa direção.
Olhando para trás, ele observa que o crescimento vertiginoso das reservas em moeda estrangeira dos bancos centrais de todo o mundo até o patamar em torno de US$ 12 trilhões foi puxado por países emergentes, que viram necessidade de ter uma forma de “seguro próprio”.
“A maneira como nós pudemos acumular reservas internacionais durante os primeiros governos do presidente Lula foi extremamente importante para garantir a nossa estabilidade macroeconômica. Nós atravessamos graves crises internacionais sem reflexos excessivamente negativos na nossa estabilidade financeira”, diz.
À frente, Awazu vê um ambiente de incerteza e menciona uma série de eventos que podem gerar nos próximos meses instabilidade ao cenário econômico mundial, entre eles conflitos geopolíticos, as eleições presidenciais nos Estados Unidos e a condução da política de juros nas economias avançadas.
Na visão dele, os bancos centrais dos países emergentes tiraram lições do passado e passaram a reconstituir suas reservas internacionais por precaução, de forma que, em caso de necessidade, tenham instrumentos para reduzir volatilidade excessiva no mercado de câmbio e disfuncionalidades temporárias.