(FOLHAPRESS) – Quando iniciou seu governo na Argentina com a tentativa de trazer para a sua alçada várias atribuições que cabem ao Congresso, movimento já contestado no Judiciário, o ultraliberal Javier Milei plantou uma dúvida: como está, no país, a qualidade dos “freios e contrapesos”, ou seja, a capacidade de cada um dos três Poderes fiscalizarem um ao outro para preservar a democracia
Cientistas políticos locais avaliam que essa balança está equilibrada, a despeito das tentativas do recém-eleito líder. Em especial porque Milei é descrito como um “presidente de minoria”: tem apenas 15% do Legislativo com seu partido, o novato Liberdade Avança.
Isso não anula as críticas feitas, inclusive por parte da base liberal que apoiou Milei, a seus intentos de concentrar poder. Ainda que fragmentado, o Congresso poderia barrar projetos de viés autoritário. O Judiciário também tem se mostrado responsivo.
O ultraliberal terá, em tese, a chance de indicar até dois dos cinco juízes que compõem a Corte Suprema. Desde 2021, um dos assentos do tribunal está vago devido à incapacidade do governo anterior, do peronista Alberto Fernández, de entrar em consenso com os diferentes blocos políticos do Senado para aprovar um magistrado palatável a todos.
No Executivo, Milei tem uma equipe enxuta de 9 ministros (eram 18 na gestão passada) que, ao menos por ora, se mostrame coerente com sua agenda. Mas há uma característica que precisa ser levada em conta: quase metade deles era, até pouco tempo, “outsiders” políticos.
A principal estratégia do governo Milei se deu no fim de dezembro, com a chamada “Lei Ómnibus” (que pode ser traduzido como “ônibus”, mas cujo termo está relacionado ao extenso volume de artigos do texto). São mais de 600 artigos que vão de mudanças das leis eleitorais até a privatização em massa de empresas públicas.
Um ponto que chama a atenção é a declaração de “emergência pública” nas áreas econômica, financeira, fiscal, de segurança, defesa, tarifária, energética, sanitária, administrativa e social até o fim de 2025. Isso permitiria que Milei decidisse sobre todos esses temas cuja legislação, hoje, é atribuição do Congresso. Mais: o texto prevê que o próprio Milei poderia prorrogar a medida por mais dois anos -ou seja, por todo o seu mandato na Argentina.
O analista político Ignacio Labaqui afirma que essa estratégia não é novidade e que vários governos a usaram. Mas nunca por tanto tempo tampouco para tantas áreas. “É uma forma de governar que se tornou bastante comum na Argentina, ainda que não seja saudável para a democracia. De certo modo é elevar ao máximo nível um método de governo que o peronismo sempre usou ao chegar ao poder.”
Por ser um projeto de lei, terá de ser aprovado pelo Congresso. Se entrar em vigor, também pode ser avaliado pelo Judiciário.
QUAL A SITUAÇÃO NO LEGISLATIVO?
Mesmo se conseguir forjar alianças com os blocos egressos da coalizão Juntos pela Mudança, do ex-presidente Mauricio Macri, apoiador de Milei para a Casa Rosada, o Liberdade Avança não possui maioria para decidir em nenhuma das duas Casas do Congresso.
“Milei é presidente não de uma minoria, mas quase de uma extrema minoria. E, nesse sentido, os freios e contrapesos para projetos de lei como esse funcionam”, diz Roberto Nolazco, analista-chefe para Argentina da consultoria Prospectiva. Há propostas do pacote da “lei ómnibus ” que demandam aprovação da maioria absoluta do Congresso, e o governo sabe que terá de negociar.
“Se Milei tenta impor algo com tão poucos deputados e senadores próprios [37 de 257 e 7 de 72, respectivamente], provavelmente terá um perda política expressiva e começará a desgastar sua imagem e poder político logo no início do mandato”, afirma Nolazco. Nenhum presidente, afinal, deseja ser um “pato manco” tão precocemente.
Samantha Olmedo, coordenadora acadêmica da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina, vê um grande desconhecimento do Estado por parte do atual governo. Mas também acredita que tudo faça parte da estratégia mileísta. “Milei ainda está em seu período de ‘lua de mel’, de um tempo que lhe é dado como tolerância; com isso, quer mostrar sua clara visão de mudança, dizer que aqueles que tentam o impedir de fazê-lo são ‘antimudança’.”
QUAL A SITUAÇÃO NO JUDICIÁRIO?
Os cinco membros da Corte Suprema devem ser indicados pelo presidente e aprovados pelo Senado. Os magistrados podem ficar no cargo até completarem 75 anos, com possibilidade de renovarem o mandato por mais cinco.
“Nenhum desses juízes responde a Milei, tampouco são juízes que respondem a Macri, que indicou alguns deles. Nenhum deles veio do Poder Judiciário, todos vieram de fora. Por mais que três tenham uma orientação ou um passado comum no peronismo, não respondem aos interesses específicos de nenhum partido”, avalia Ignacio Labaqui.
Milei pode ter a chance de indicar até dois nomes para a alta corte: um para a vaga que desde 2021 está sem ninguém. Outro para substituir Juan Carlos Maqueda, que no fim de 2024 fará 75 anos e terá de optar pela aposentadoria ou por mais cinco anos no cargo, desde que o Senado dê aval. Ainda é incerto que decisão Maqueda tomará. De qualquer forma, os analistas veem como extremamente improvável que o ultraliberal consiga um acordo amplo no Senado para encontrar um nome satisfatório.
A gestão de Fernández e de Cristina Kirchner pôs em marcha um “julgamento político” de todos os magistrados da corte no Congresso, acusando-os de exercerem mal seus cargos -e, no caso da ex-presidente, de persegui-la politicamente. Milei já disse que esse processo minguará sob sua batuta.
Em outros momentos da história recente do país, quando teve de decidir sobre medidas como a que Milei tenta aprovar com seu projeto de “lei ómnibus”, a alta corte afirmou que, para o presidente exercer de forma legítima ações que extrapolam sua alçada, havia apenas dois cenários possíveis.
No primeiro, Câmara e Senado não estariam aptos a se reunir por circunstâncias de força maior, como guerras, conflitos armados ou desastres naturais. No segundo caso, teria de se comprovar a necessidade de urgência para uma tomada de decisão, sem esperar o trâmite normal das leis.
QUAL A SITUAÇÃO NO EXECUTIVO?
Javier Milei formou uma equipe heterodoxa e enxuta de nove ministros ao formar alguns “superministérios”, unindo diversas áreas que perderam suas pastas próprias. O governo está em seu início e, portanto, é difícil ver discordâncias públicas até aqui.
Mas um fator chama a atenção: alguns dos principais nomes desta gestão, como a chanceler Diana Mondino e o ministro da Justiça, Mariano Cúneo Libarona, eram de fora do universo político.
“Quando se envolvem em altos cargos políticos figuras que não vêm da política e que, portanto, não terão uma lealdade absoluta ao presidente apenas para manter suas carreiras políticas, cria-se um certo risco, ainda que isso não deva acontecer em curto prazo”, diz Roberto Nolazco.
Quem é quem no Supremo argentino
Horacio Rosatti, 67: Indicado em 2016 por Maurício Macri, exerceu cargos próximos ao peronismo antes: foi ministro da Justiça de Néstor Kirchner no início dos anos 2000 e procurador do Tesouro (Procurador da República); é o atual presidente da corte
Juan Carlos Maqueda, 74: Indicado em 2002 pelo presidente Eduardo Duhalde, foi um quadro conhecido do peronismo de Córdoba, tendo atuado como deputado e senador pela província; ao completar 75 anos no fim deste ano, terá duas opções: aposentar-se ou estender o mandato por mais cinco anos, desde que o Senado dê aval
Ricardo Lorenzetti, 68: Nomeado em 2007 por Néstor Kirchner, foi militante peronista na juventude, até que passou a se dedicar aos setores privado e acadêmico
Carlos Rosenkrantz, 65: Também indicado em 2016 por Macri, é egresso do setor acadêmico, mas tem viés mais liberal e próximo à União Cívica Radical (UCR), um partido histórico de centro-direita
Quinta vaga: Em aberto desde que a única mulher da Corte Suprema, Elena Highton, renunciou em 2021, após 17 anos no cargo