‘Pobres Criaturas’ faz de Emma Stone um monstro de ‘Frankenstein’ feminista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Meu nome é Bella Baxter”, diz Emma Stone com a voz embriagada e o olhar disperso várias vezes ao longo de “Pobres Criaturas”. Por mais que ela goste de frisá-lo, no entanto, o sobrenome poderia ser facilmente substituído por Frankenstein, já que ela é, também, cria de um cientista que desafia a religião ao criar vida dentro de seu laboratório.

Mas não é no horror clássico de Mary Shelley que a trama indicada ao Oscar de roteiro adaptado foi buscar suas bases. Considerado um dos nomes mais importantes da literatura escocesa contemporânea, Alasdair Gray escreveu “Poor Things”, no original, como uma versão com mais frescor e devassidão da jornada de uma criatura morta-viva.

Agora, ela ganha as telas pelas mãos do diretor grego Yorgos Lanthimos, dono de um cinema igualmente fresco e devasso, que caiu nas graças de Hollywood após filmes embebidos em premissas absurdas e humor cáustico, como “O Lagosta” e “A Favorita” -este, outra parceria que fez de Emma Stone forte concorrente ao Oscar.

Ela é a única capaz de ameaçar a estatueta de atriz que parecia prestes a cair nas mãos de Lily Gladstone, de “Assassinos da Lua das Flores”, até pouco tempo atrás. Em boa parte, graças à fisicalidade que o papel demanda.

Conhecemos Bella Baxter assim que ela é criada pelo cientista de Willem Dafoe. Ele encontra uma mulher grávida que comete suicídio e decide transplantar o cérebro do bebê para o corpo da moça -eis que nasce a protagonista, com estrutura madura e mentalidade infantil.

Por isso, ela precisa aprender a falar e coordenar seu corpo disfuncional, dando ao filme ares de humor pastelão -como na cena em que cumprimenta um desconhecido com um acidental soco na cara. Em conversa por vídeo, Stone diz que o set de filmagem era um ambiente de experimentação, e que a cada take tentava fazer algo diferente com seus movimentos.

O ápice acontece num luxuoso salão de dança. Numa já viral cena que compartilha com Mark Ruffalo, que interpreta um tipo escroque e ninfomaníaco que se apaixona por ela, Bella contorce o corpo em movimentos frenéticos, numa coreografia digna de filme de possessão.

Aos poucos, a mulher adulta que age como uma criança curiosa e birrenta vai envelhecendo e, consequentemente, controlando seus anseios -como o sexual, responsável por uma bela porção de cenas gráficas e suadas entre Stone, Ruffalo e, depois, os decrépitos clientes de um bordel.

Os momentos de intimidade ganharam manchetes, renderam uma classificação indicativa de 18 anos no Brasil e foram defendidos por Stone como peças fundamentais para narrar a trajetória de descoberta de sua personagem.

“Ela está aprendendo muitas coisas. No caso do sexo, ela acha que é só prazer no princípio, até entender sua natureza e as complexas dinâmicas de poder envolvidas. É uma parte importante do seu amadurecimento, como é para todos nós na vida real”, reforça a atriz.

“Sentir vergonha era como uma droga para mim, por causa da minha criação enquanto luterana. Eu internalizei muitas das coisas sobre as quais sentia culpa, mas com a Bella eu tenho questionado o efeito disso em mim. Foi um trabalho que me fez pensar muito na natureza da vergonha”, diz ela ainda, ao refletir sobre os vários processos de descoberta vividos dentro da personagem.

A crueza e selvageria de cenas como estas ajudam a trazer o espectador para a realidade, já que é fácil se perder naquele mundo repleto de fantasia, quase infantil de tão plástico. Ambientado na era vitoriana, “Pobres Criaturas” faz uma reconstituição de época às avessas, misturando influências do steampunk e do surrealismo num banquete visual.

Exagerados, os figurinos disputam a atenção com os cenários artificialmente coloridos e táteis, não aqueles genéricos feitos por computação gráfica. Sua versão para a cidade de Lisboa, para onde Bella vai para se entupir de pastéis de nata, é quase etérea e musicalmente carregada -a fadista Carminho tem uma participação especial, hipnotizando a protagonista com a coreografia de seus lábios.

Contribui, ainda, para a sensação de estar perdido num sonho a câmera alucinante de Robbie Ryan, que concorre ao Oscar de melhor fotografia por ter brincado com a saturação, o enquadramento e o zoom das cenas, nunca conservadoras. É que Lanthimos ama fotografia, então tem um pensamento muito estético quando dirige, diz Ryan, também em conversa por vídeo.

Mesmo imerso em fantasia, no entanto, “Pobres Criaturas” não poderia ser mais atual. Para além da jornada de amadurecimento da protagonista, o filme trata também de um processo de emancipação. Enquanto vai aprendendo mais sobre o mundo, Bella entende o quanto os homens a seu redor querem controlá-la.

Primeiro é o pai, na pele do cientista que tenta podar sua educação e seus modos. Depois, o noivo, que mascara suas tentativas de controle com muita preocupação e afeto. E, por fim, o amante intragável de Mark Ruffalo, um típico cafajeste que vê Bella como sua propriedade.

Mas como em “A Favorita”, Stone volta ao papel de uma mulher aparentemente ingênua e bobinha que, aos poucos, vai controlando a narrativa que se desenrola e manipulando os personagens à sua volta.

Nem por essa clara oposição entre homens e mulher Dafoe vê o longa, exatamente, como um cântico feminista. “É um filme muito rico sobre muitas coisas. Fala sobre liberação, mas de forma aberta. Fala sobre questionar o que tomamos como convenções sociais e ir atrás de sua própria natureza”, diz o ator, que, para viver o cientista, aprendeu a cortar e suturar com funcionários de um necrotério.

Ao seu lado, Ruffalo cede mais facilmente aos contornos antimachistas que “Pobres Criaturas” vem ganhando na internet e na crítica estrangeira.

“Eu tenho duas filhas e observo como a sociedade dita seus comportamentos, as cores que devem usar. É horrível para as garotas, elas são tratadas diferente. Então sim, é um filme político, embora ainda mais profundo que essa discussão”, diz.

Ruffalo, também, concorre ao Oscar de ator coadjuvante pelo papel, que vem sido louvado como um dos melhores de sua carreira.

Depois de ser o grande vencedor do último Festival de Veneza, “Pobres Criaturas” disputa, no total, 11 estatuetas do homenzinho dourado, e é o segundo filme mais indicado, atrás de “Oppenheimer” -que, pelas apostas, promete deixar este e muitos outros a ver navios.

POBRES CRIATURAS

Quando Estreia nesta quinta (1°), nos cinemas
Classificação 18 anos
Elenco Emma Stone, Mark Ruffalo e Willem Dafoe
Produção EUA, Reino Unido e Irlanda, 2023
Direção Yorgos Lanthimos

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