SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os policiais militares que estavam no prédio onde um imigrante senegalês morreu ao cair do sexto andar, na noite desta terça-feira (23), no centro de São Paulo, entraram no local sem mandado judicial. A entrada de forma irregular no edifício foi denunciada por moradores e registrada no boletim de ocorrência do caso pelo delegado responsável.
A morte de Serigne Mourballa Mbaye, 36, foi seguida de uma manifestação de moradores da rua Guaianases, revoltados com a ação da polícia. Alguns chegaram a entrar em confronto com os policiais, que estavam com escudos, bombas de gás e armas com balas de borracha.
Em depoimento à Polícia Civil, o tenente Fernando Lopes e o cabo Felipe dos Reis disseram que entraram no edifício Japurá, no nº 50 da Guaianases, após abordar três suspeitos na rua. Eles contaram que nada de ilícito foi encontrado, mas um dos suspeitos contou que havia um ponto de comércio de celulares roubados no apartamento 609 do prédio.
Os dois PMs contaram que foram ao prédio em seguida e que a síndica do prédio questionou a presença deles ali. Eles teriam respondido que estavam ali para verificar o apartamento, segundo o depoimento à Polícia Civil.
No BO, o delegado Sandro Távora, do 2º DP, no Bom Retiro, registra que os policiais “estranhamente, em período noturno e sem mandado de busca e apreensão, tenham adentrado ao local”. Ele diz, no documento, que é “imprescindível que eventuais excessos sejam analisados pelo Poder Judiciário”.
À reportagem a síndica Maria de Lurdes, 67, disse que os PMs entraram sem dizer nenhuma palavra e ignoraram suas reclamações. “Eu falei para eles: ‘O que é isso? Aqui é a casa da mãe Joana, por acaso?’, mas nem olharam para minha cara”, contou. “Eles fazem isso [entrar sem mandado] direto aqui, desde o começo do ano.”
O relato é corroborado pela vendedora autônoma Bianca França, 24, que mora há cerca de um ano no edifício Japurá. Ela conta que policiais militares entraram sem mandado em seu apartamento há duas semanas. Quando entrou em casa, França deu de frente com os PMs, apontando armas para a porta.
“Eu fui ao mercado comprar água, e quando voltei encontrei com os policiais dentro da minha casa. Eles ficaram filmando tudo com celulares”, conta a vendedora. “E eles dizem assim: ‘o mandado sou eu’.”
A síndica e duas moradores dizem, ainda, que o HD que armazena as imagens das câmeras de segurança –e que teria registrado a entrada dos PMs no prédio– sumiu em meio à confusão que se instalou na rua entre moradores e policiais.
Segundo o professor Rodrigo Azevedo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a PM teria respaldo legal para entrar em imóveis sem mandado judicial apenas em casos de flagrante.
“Há base legal e jurisprudencial para autorizar este tipo de abordagem domiciliar, quando se tratar de flagrante delito, ou seja, quando os policiais constatam que há delito sendo praticado, seja de violência doméstica, seja quanto abordam alguém na rua com drogas, tudo a indicar que há também drogas em depósito no local de residência”, diz Azevedo.
“Não sendo este o caso, seria necessário sim o mandado de busca e apreensão para o ingresso no local. De todo modo, existe aí uma ‘zona cinzenta’, em que cabe tanto à autoridade policial quanto ao Ministério Público e ao Poder Judiciário avaliar, no caso concreto, se havia justa causa para o procedimento policial”, ele completa.
HOMEM PRESO DIZ QUE TENTOU FUGA PELA JANELA
O apartamento 609 do edifício Japurá já apareceu em investigações da Polícia Civil como um dos principais pontos de receptação de celulares roubados e furtados na cidade. De acordo com as investigações, ao menos quatro estabelecimentos no mesmo quarteirão, entre as ruas Aurora e Timbiras, são usados pelos criminosos para armazenar aparelhos roubados e despistar os policiais.
A polícia prendeu dois homens durante a ocorrência: um por suspeita de receptação de aparelhos roubados e outro por desobediência durante o confronto com a polícia. O boletim registra que foram apreendidos 44 celulares, seis notebooks, um tablet e uma máquina de cartão no apartamento.
O vendedor Bara Ndiaye, que foi preso pela PM na noite desta terça, disse em depoimento à polícia que estava no apartamento 609 com Mbaye, que acabou morto, para consertar seu telefone que estava com defeito de recarga. Quando os policiais bateram na porta do apartamento, segundo o vendedor, Mbaye “foi para a janela e o chamou para ir junto”.
Enquanto Mbaye seguiu em frente e atravessou a janela, apoiando-se numa marquise, Ndiaye estava apoiando-se no peitoril quando foi capturado. O vendedor disse que, depois disso, ouviu um dos policiais dizer que Mbaye havia caído.
O tenente Lopes disse, em depoimento, que viu o homem apoiado à marquise do andar de baixo, à esquerda da janela do apartamento 609. “Em seguida, proferiu ordem para que o homem entrasse no apartamento da marquise em que se encontrava, alertando-o sobre o risco de queda. No entanto, o homem se pendurou na marquise para acessar o andar de baixo e, quando estava entre o quinto e quarto andar, caiu daquela altura”, relata o boletim com o depoimento do policial.
O vendedor preso afirmou à polícia que Mbaye morava no apartamento 609. A reportagem esteve no local e não encontrou cama, colchão ou sofá. No imóvel –um quarto e sala, com uma copa ao lado da entrada– havia apenas uma mesa de centro, cabos USB, um modem e um equipamento que lembra um estabilizador de potência elétrica para computadores. Além disso, havia uma caixa com vários anéis de metal.
Segundo amigos de Mbaye, ele migrou para o Brasil em 2013 e morou em cidades da região Sul. Ele morava em São Paulo havia ao menos nove anos.
Uma nova confusão ocorreu na rua dos Guaianases na manhã desta quarta (24), por volta das 11h20. Dessa vez, começou com um desentendimento entre os próprios moradores que acusaram um homem de fora da comunidade de filmar os senegaleses no local e acusá-los de receptação de celulares roubados.
Ao menos oito viaturas da PM, além de motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas), chegaram ao local em poucos minutos para apartar a briga, que terminou sem feridos e sem detidos.