PGR irá avaliar federalização de casos de letalidade policial no RJ

O Ministério Público Federal (MPF) estuda pedir a federalização de quatro casos envolvendo letalidade policial no Rio de Janeiro. Um deles envolve a chamada Chacina do Jacarezinho, ocorrida em 2021 durante operação policial que deixou 28 mortos é considerada mais letal da histórica da capital fluminense. A discussão ocorre tendo em vista indícios de violações de direitos humanos em processos que tramitam na esfera estadual. 

 

A palavra final cabe ao procurador-geral da República, Paulo Gonet. Um eventual pedido de federalização dos casos precisa ser encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Não há um prazo para que Gonet tome sua decisão. Ele deverá avaliar a questão com base em uma representação protocolada nesta quarta-feira (10) pelo procurador Eduardo Benones, coordenador do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial do MPF no Rio de Janeiro, que se manifesta favoravelmente a um pedido de deslocamento da competência da esfera estadual para a esfera federal. 

Caso ocorra a federalização, há impacto tanto para o julgamento como para o processo de investigação e de apresentação da denúncia, que deixariam de ser feitas pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e passariam para a Polícia Federal e o MPF.

“Após efetuar diversas análises, estamos representando pela federalização. Estamos bastante convencidos pelos documentos trazidos que houve nesses casos graves violações aos direitos humanos”, anunciou Benones em reunião na tarde desta quarta-feira (10) com representantes da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave), que é constituída por instituições defensoras de direitos humanos, movimentos de mães e familiares das vítimas e grupos clínicos de atenção psicossocial. Foram eles que levaram ao MPF a demanda pela federalização dos casos.

“Essa decisão é fundamental para a gente garantir os direitos à verdade, à memória, à justiça e à reparação das famílias afetadas pela violência do Estado e assim conseguir preservar e reparar a saúde dessas pessoas que fica muito afetada com o arquivamento indevido, com o processo de criminalização, com os maus-tratos que recebem das autoridades”, disse o advogado Guilherme Pimentel, coordenador técnico da Raave.

Um dos casos incluídos na representação envolve as mortes do filho e do marido de Sônia Bonfim. Eles se deslocavam numa moto quando foram alvos de tiros durante uma operação policial em 25 de setembro de 2021 no Complexo do Chapadão, onde moravam na zona norte do Rio de Janeiro. 

Sônia critica a falta de perícia e busca saber porque o caso não está tramitando na Delegacia de Homicídios e sim na 31ª Delegacia de Polícia Civil. Passados quase três anos, o inquérito não foi concluído.

“Ainda está na fase de investigação e sob sigilo”, diz Sônia. Ela relata ter sido maltratada nas ocasiões em que foi ao local solicitar informações. “Eu consegui pegar a moto que era do meu esposo. Mas não me entregaram o documento que comprova que a moto é dele. Só me entregaram a moto como uma cala boca. O celular que era do meu filho também sumiu”, critica. Ela afirmou estar esperançosa com a federalização. “A gente está cansada de injustiças na esfera estadual. Quero que seja realizada uma perícia independente”, cobra.

Conforme a representação, os casos elencados envolvem investigações que registram irregularidades como negligência na obtenção de provas, desaparecimento de provas, omissão na escuta de testemunhas fundamentais e arquivamento prematuro de inquéritos. Também são relatadas súbitas desistências de algumas testemunhas em prestar depoimento e até mesmo o homicídio de outras.

Um desses casos foi incluído no pedido de federalização: trata-se da morte de um homem durante uma operação policial no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, em setembro de 2022. Ele morreu uma semana antes da data agendada para prestar depoimento em um processo que tratava do homicídio de um jovem de 16 anos, ocorrido em 2005, no qual três policiais militares figuravam como réus. O homem era considerado uma testemunha-chave. Na etapa investigativa, ele havia relatado como foi a abordagem à vítima, que andava de bicicleta, e afirmou que houve disparos para o alto para simular um falso tiroteio. Conforme a representação, a morte da testemunha não foi elucidada.

Sobre o caso que ficou conhecido como Chacina do Jacarezinho, Benones criticou a ausência de uma investigação concentrada. Ele menciona na representação que o desmembramento em 12 inquéritos fragmentou e prejudicou a apuração dos crimes. Apesar dos indícios de execuções sumárias e de arrastamento de corpos, somente um homicídio gerou acusação formal.

O quarto caso incluído na representação diz respeito à morte de um mototaxista, atingido na cabeça em 2018 na Cidade de Deus, também na zona norte da capital. Gravações de uma câmera de segurança captaram o momento em que policiais em perseguição a dois homens efetuam disparos de fuzil em área movimentada. Um dos tiros atingiu o mototaxista. “Apesar dos registros e da inequívoca identificação do responsável, o inquérito policial ainda não foi concluído”, escreveu Benones.

Na representação, o procurador também menciona outro fato que não teria tido a devida apuração. Após uma operação policial em novembro de 2021, no Complexo do Salgueiro, no município de São Gonçalo (RJ), entidades que atuam na defesa dos Direitos Humanos flagraram o que apelidaram de “fogueira de provas”. Roupas com vestígios de sangue e perfurações, além de outros objetos, haviam sido reunidas e queimadas. As entidades denunciaram a destruição de elementos que poderiam elucidar as mortes de oito pessoas, cujos cadáveres foram retirados de um manguezal, razão pela qual o episódio ficou conhecido como Chacina do Manguezal.

“Talvez esse episódio seja a expressão mais gritante da ausência total de cuidados com a perícia no Rio de Janeiro”, diz o advogado da Raave, Guilherme Pimentel. Ele também aponta que a descrença das famílias com os inquéritos e os processos em andamento aumentaram com as recentes revelações de que autoridades públicas estaduais, incluindo um delegado, participaram do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes e também atuaram na obstrução do inquérito. As descobertas vieram à tona após um deputado federal se tornar investigado, exigindo assim o deslocamento do caso para o Supremo Tribunal Federal (STF) e o envolvimento da Polícia Federal nas apurações.

“Quando as instituições federais entraram no caso, conseguiram perceber esse envolvimento criminoso e chegaram aos mandantes. Isso traz à tona uma questão na cabeça de todas as famílias que perderam um parente assassinado por algum agente público. As mães ficam se perguntando com razão: ‘será que estão obstruindo as investigações do assassinato do meu filho? Será que é isso que tem gerado o arquivamento de tantos assassinatos cometidos por agentes públicos’?”, diz.

Mães que participam da Raave vêm denunciando atos ilícitos e irregularidades que dificultam a solução dos casos, boa parte deles envolvendo alterações na cena do crime: implantação de armas e drogas, remoção de cadáveres, recolhimento de cápsulas, simulações de tiroteio. Também há indignação com os registros nos boletins de ocorrência. Houve ocorrências em que tiros pelas costas aparecem como “auto de resistência”, quando a vítima resiste à abordagem policial.

De acordo com Pimentel, os quatro casos incluídos na representação integram uma primeira leva encaminhada ao MPF para análise. Ele lembra que a Raave atua com foco na atenção psicossocial das famílias e que a atuação jurídica busca também cumprir um papel importante para a saúde dessas pessoas, em meio às angústias e aflições. 

“De certa maneira, o profissional do direito começa a se identificar também como um profissional da saúde. Toda vez que a Raave se deparar com o sofrimento psicossocial e com adoecimento das famílias em virtude da estagnação dos seus casos ou um arquivamento indevido, a gente vai trazer ao conhecimento do Ministério Público Federal para a análise de uma possível federalização”.

O coordenador também lembra que, no mesmo dia em que a discussão da federalização dos quatro casos chegou ao gabinete do procurador-geral da República, familiares das vítimas manifestavam sua indignação com mais uma decisão judicial na esfera estadual. Na terça-feira (9), o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) absolveu sumariamente três policiais denunciados pela morte do adolescente João Pedro, morto durante na Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), no dia 18 de maio de 2020.

A juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine considerou que os agentes agiram em legítima defesa. A sentença foi considerada pela Anistia Internacional como uma mensagem de impunidade diante das provas técnicas e testemunhais. João Pedro tinha 14 anos quando levou um tiro nas costas dentro da casa de um tio, durante ação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Os três policiais eram réus por homicídio e por fraude processual.

Também integrante do Raave, Bruna Silva teme o mesmo desdobramento para o caso do seu filho, morto aos 14 anos durante uma operação policial em 2018 no Complexo da Maré. “É um absurdo dizer que não houve intenção de matar. Se vocês vissem o estado que eu encontrei o corpo dele no IML [Instituto Médico Legal]. É a mesma coisa o caso do João Pedro. O menino estava dentro de casa na pandemia, que era uma época em que você não podia sair na rua. Então o policial invade, atira na criança e retira ela falando que está socorrendo. E o menino morre no meio do caminho. E diz que não teve intenção de matar”, lamenta.

Segundo Bruna, decisões como a do caso João Pedro afetam a saúde mental das famílias e a falta de responsabilização dos crimes geram adoecimento. Ele lembra que há mães que faleceram antes de obter justiça para seus filhos. “Ver o retrocesso dessa decisão é como se a gente estivesse revivendo o nosso luto de novo. Mas não seremos silenciadas. No caso do meu filho, o pedido de federalização já foi feito. Mas a testemunha principal do caso foi morta também por um agente público. E eu quero reforçar o pedido para que o caso dessa testemunha também seja federalizado. Enquanto tivermos braços, a gente vai se apoiar. Não vamos desanimar porque se tratam de filhos e a gente vai lutar por cada vida”, acrescenta.

De acordo com o procurador Benones, os quatros casos incluídos na representação reúnem os dois requisitos para a federalização: há indícios de grave violação aos direitos humanos e há possibilidade de que o Estado brasileiro seja responsabilizado internacionalmente. Ele lembra que, em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, instituição judicial vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o país por não garantir a justiça no caso das chacinas ocorridas durante ações policiais na comunidade Nova Brasília, na zona norte do Rio de Janeiro, em 1994 e 1995. Os episódios deixaram 26 mortos. O Brasil foi obrigado a reabrir as investigações e indenizar 80 pessoas.

“Quando a gente pede a federalização é porque nós já esgotamos todas as possibilidades e estão preenchidos todos os requisitos. Isso pode ocorrer para todo tipo de caso. Tanto aqueles que estão em andamento, como aqueles que tiveram conclusão, mas que exista uma avaliação de que não houve a melhor conclusão com relação aos fatos”, diz Benones. Ele disse que a federalização dos quatro casos podem gerar precedente para outros similares.

Benones também destacou que havia um requisito que não é mais obrigatório. A morosidade excessiva ou a decisão deliberada das autoridades do estado de não darem curso a investigações de determinados crimes era uma exigência derrubada em setembro do ano passado pelo STF.

O procurador, no entanto, avaliou que a situação do Rio de Janeiro precisa ser avaliada sob outras óticas, e não apenas pelo prisma judicial. “Depois de 10 anos atuando no controle externo da atividade policial, vejo o crescimento de um discurso que aponta um antagonismo falso e perverso entre segurança pública e direitos humanos. Posso fazer várias representações pedindo a federalização dos casos. Mas é urgente desconstruir esse antagonismo, que legitima as violações de direitos humanos”.

Segundo ele, é plenamente possível uma segurança pública com respeito aos direitos humanos. Benones também afirma que o controle externo não existe para satanizar nenhum agente do Estado e defendeu medidas como o uso das câmeras nos uniformes policiais e a criação de protocolos específicos para a investigação de crimes cometidos pelo Estado ou por agentes policiais no exercício de suas atividades.

“Hoje não existem esses protocolos. Seriam regulamentos exatamente para que, se não forem seguidos, aqueles que estão no papel de fiscalizar saibam o que aconteceu. As câmeras são também para proteção do próprio policial, inclusive contra o mau policial que estiver atuando ao seu lado”, acrescentou.

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