MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Os pedidos de cidadania italiana feitos por brasileiros descendentes de antigos emigrados têm sobrecarregado os tribunais e o setor de registros de cidades pequenas do Vêneto, no norte da Itália. A reclamação vem de prefeitos e de membros do Judiciário.
A questão envolve residentes no Brasil que entram com a solicitação nas cortes da Itália, num desvio do procedimento padrão, que ocorre por meio dos consulados, nos quais a espera pode levar até dez anos. Pela via judicial, costuma durar até dois anos.
Além do volume grande de descendentes de italianos no Brasil -cerca de 32 milhões, pela estimativa da Embaixada da Itália no Brasil-, uma mudança na legislação do país europeu em 2022 alterou os trâmites dos processos de cidadania, aumentando a pressão sobre os municípios. Segundo a imprensa italiana, só no Vêneto foram 12 mil pedidos por via judicial no ano passado, a maioria de brasileiros, seguidos por argentinos e venezuelanos.
Depois que a solicitação é apresentada ao Judiciário, o tribunal emite uma ordem à cidade de origem do antepassado para que seja reconhecida a cidadania do requerente e sejam produzidos registros retroativos, como os de nascimento e casamento. Esses atestados são o ponto de partida para a solicitação do passaporte italiano.
Muitas vezes, um único pedido envolve outros membros de uma mesma família, multiplicando o número de certificados. Em geral, as prefeituras recebem um prazo de 30 dias para cumprir a decisão. Além disso, cabe ao setor de registros checar, nos arquivos originais, a veracidade das informações sobre os emigrados, como grafias de nomes e datas, e conferir que todas as gerações tenham mantido a cidadania italiana.
É dessa quantidade de documentos e do prazo exíguo que reclamam prefeitos do Vêneto, a região que mais teve emigrados para o Brasil até o início do século 20. De 1870 e 1920, 1,4 milhão de italianos foram viver no Brasil, dos quais 366 mil do Vêneto.
“Somos constantemente invadidos por pedidos de documentos, reconhecimentos de cidadanias e ordens do tribunal”, diz à Folha Camillo De Pellegrin, prefeito de Val di Zoldo, nos Alpes, com cerca de 3.000 habitantes. “Do ponto de vista administrativo, é algo inconcebível e inaceitável que isso venha a recair sobre os municípios.”
A prefeitura tem só um funcionário em período integral e outro em meio período encarregados pelos registros. Em janeiro, o município foi notificado pelo Tribunal Administrativo Regional por decisão não cumprida referente a um pedido de cidadania. Segundo De Pellegrin, atualmente estão na fila 580 requerimentos -95% vêm do Brasil.
Irritado pela notificação recebida, o prefeito foi às redes sociais avisar os moradores de que o serviço de atendimento sofrerá lentidão para que se possa “dar prioridade” aos ítalo-brasileiros e evitar novas intimações.
“Município de Val di Zoldo do Brasil, Estado do Rio Grande do Sul. Vamos hastear até a bandeira brasileira”, escreveu ele no Facebook. De Pellegrin adicionou imagens da fachada da prefeitura com uma bandeira do Brasil e de um aviso colado na porta, em que anuncia a restrição dos serviços à população.
Prefeito desde 2011, De Pellegrin é um dos mais combativos na região contra pedidos de cidadania à distância. A questão afeta outras cidades pequenas do Vêneto, como Soverzene, Tambre, Borgo Valbelluna, Limana e Agordo.
Incomoda as autoridades locais o fato de a maioria dos brasileiros que faz o processo dessa maneira não utilizar a cidadania para morar na Itália. Os neo-italianos são acusados de buscarem o passaporte apenas para circular com mais facilidade dentro da área Schengen, que inclui países da União Europeia, Suíça e Noruega, e para entrar nos Estados Unidos sem a necessidade de visto.
“Não se trata de xenofobia ou racismo. Se alguém que pede a cidadania no Brasil quiser vir morar em Val di Zoldo e ajudar a cidade a crescer, ajudo até a procurar apartamento”, diz De Pellegrin.
Ele considera sua cidade uma vítima de “negócios milionários” por trás dos pedidos, em referência a agências brasileiras e advogados italianos que oferecem o serviço de cidadania via judicial.
O tema foi parar na cerimônia de abertura do ano judiciário do Vêneto, no fim de janeiro. “O tribunal de Veneza é o único que viu aumentar as suas pendências, ao ser atingido por uma série de pedidos e recursos de reconhecimento da cidadania de brasileiros ligados à Itália”, afirmou o presidente do Tribunal de Recursos de Veneza, Carlo Citterio.
Os magistrados e os prefeitos chamam a atenção para um efeito colateral de “natureza política”. Quando uma pessoa obtém a cidadania italiana, é inscrita na lista de eleitores do município mesmo que more em outro país. Val di Zoldo, por exemplo, tem 3.000 habitantes residentes e outros 1.700 que vivem no exterior, dos quais 60% brasileiros, segundo o prefeito.
“Isso pode ser um problema porque as eleições municipais requerem um quórum de participação, e o risco é que as votações possam ser invalidadas se esse número não for atingido”, afirma Carlo Rapicavoli, diretor da Associação do Municípios do Vêneto.
Para Rapicavoli, o governo em Roma tem de mudar as regras ou aumentar os recursos humanos das cidades menores para lidar com os pedidos de cidadania. “Os municípios precisam ser ajudados.”