SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A especulação imobiliária que pode ser desencadeada pela chamada “PEC das Praias” preocupa ambientalistas. Na visão de pesquisadores, a proposta de emenda à constituição 03/2022 traz risco a ecossistemas sensíveis do litoral brasileiro.
Para Bárbara Pinheiro, bióloga e diretora-executiva do Instituto Yandê, ONG de proteção ambiental com sede em Alagoas, as mudanças podem incentivar a grilagem (apossamento ilegal) de terrenos de marinha. O texto prevê a transferência desses espaços em áreas urbanas da União para estados e municípios ou proprietários privados.
Com o novo status, ela avalia, o interesse pelos terrenos à beira-mar pode disparar, levando a uma maior ocupação de áreas de restinga e manguezais. A degradação desses ecossistemas é preocupante, destaca, porque eles são considerados estratégicos na mitigação e na adaptação às mudanças climáticas.
Zonas de mangue são “sumidouros” de carbono e protegem a área costeira da erosão. A vegetação da restinga também ajuda na resiliência do litoral contra ressacas e chuvas extremas.
“Essas áreas de restinga e manguezais são nossos protetores contra as mudanças climáticas. Então, principalmente em questão de eventos extremos e elevação do nível do mar, os terrenos de marinha são fundamentais para que a gente consiga se adaptar melhor, para não ter grandes impactos. A natureza está lá para nos defender”, diz.
Keltony Aquino, pesquisador da UFF (Universidade Federal Fluminense) apoiado pelo Instituto Serrapilheira, também teme o incentivo da expansão urbana desordenada. Além do risco de supressão inadequada da vegetação, ele aponta para o provável aumento da poluição da água.
“O Brasil tem sérios problemas em termos de monitoramento ambiental. Transferir esses terrenos para estados, municípios ou para a própria iniciativa privada deixa as áreas costeiras vulneráveis, uma vez que pode não ter regulamentação ou fiscalização adequada. São ecossistemas sensíveis, que já sofrem com erosão e um processo acentuado de urbanização”, afirma.
Para Clemente Coelho Júnior, professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas da UPE (Universidade de Pernambuco), manter as áreas de marinhas já ocupadas sob proteção de leis federais é importante para assegurar as APPs (áreas de proteção permanente), as vegetações de restinga e as dunas.
Assim como Aquino, ele acredita que haverá um descontrole caso a responsabilidade seja repassada para estados, municípios e iniciativa privada, com risco de impactos ambientais nos ecossistemas costeiros marinhos.
“O meio ambiente é um direito difuso, transversal. Então, quando se retira mais uma camada protetiva, o país está deixando vulnerável ecossistemas extremamente sensíveis”, avalia.
Comparação com Cancún
Os pesquisadores destacam também que a PEC pode prejudicar a permanência de comunidades caiçaras que sobrevivem da pesca artesanal.
Na avaliação de Bárbara Pinheiro, apesar de o texto da PEC não tratar da privatização de praias -apenas dos terrenos à beira-mar–, o efeito pode ser parecido. Com a possibilidade de transferência das propriedades das áreas de marinha, a bióloga acredita que os beneficiados serão os mais ricos.
Integrante do movimento Liga das Mulheres pelo Oceano, ela cita, como exemplo, o projeto apelidado de “Cancún brasileiro”, orçado em R$ 7,5 bilhões, que prevê, inicialmente, 28 empreendimentos no litoral de Pernambuco e Alagoas. A iniciativa da incorporadora imobiliária Due tem parceria com o jogador Neymar. O anúncio da participação do atleta no negócio gerou reações nas redes sociais.
“A gente está lutando contra esse pacote inteiro de destruição muito bem articulado [no Legislativo]. Eles [os políticos] já quiseram passar a boiada nas florestas, e agora estão querendo passar na parte marinha”, diz a bióloga, em referência à fala do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, sobre a estratégia de afrouxar leis ambientais no governo Bolsonaro.
Cofundador do Instituto Bioma Brasil, voltado à educação e conservação do litoral, Coelho Júnior avalia como uma desvalorização cultural do país a comparação com Cancún. Ele vê a associação com o balneário mexicano como uma estratégia de propagar o turismo excessivo e a exploração imobiliária, sem planejamento correto, o que afetaria negativamente a biodiversidade local e as comunidades tradicionais, na sua visão.
“Cancún é sobrecarregada de um turismo em massa que realmente causou grandes danos à região. O nosso litoral é belo pelo que ele é, pela história evolutiva dele, há milhões de anos. Nós não temos águas tão transparentes como as de Cancún, a não ser numa determinada época do ano. Nossa beleza cênica, a beleza dos nossos ecossistemas, reside na biodiversidade”, descreve.
O bispo Dom Limacêdo da Silva relata que, quando auxiliou a arquidiocese de Olinda e Recife, em Pernambuco, participou do Conselho Pastoral dos Pescadores do Nordeste e acompanhou de perto o conflito gerado pela construção do muro de contenção em um terreno privado que dificulta o acesso à praia no Pontal de Maracaípe, na região de Porto de Galinhas.
Ele destaca que presenciou o proprietário da área expulsar os pescadores, que tiram o sustento dessa atividade. “O país não pode legislar contra a dignidade humana. O rico já tem tanto e ainda quer tirar o pouco que o pobre tem”, opina.