Ortega avança até contra o próprio irmão na Nicarágua após críticas a sua ditadura

BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Uma entrevista crítica aos possíveis rumos dinásticos de seu regime levou o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, 78, a direcionar a sua máquina de repressão contra seu próprio irmão, Humberto, 77, também ele um ex-guerrilheiro sandinista e uma figura controversa.

Desde o início desta semana, o caçula do ditador nicaraguense está sob prisão domiciliar em sua casa na capital Manágua, ainda que contra ele não pesem acusações judiciais, informaram jornais como o La Prensa e o Confidencial, alguns dos únicos nos quais ainda é possível conseguir informações sobre o que se passa sob a ditadura.

O crime de Humberto foi falar. Ao veículo argentino Infobae, ele disse no último dia 19 frases como a de que o atual grupo no poder -leia-se seu irmão Daniel e a esposa dele e braço direito, Rosario Murillo, 72- deveria “ter consciência do desvio que fez de um processo democrático”. Chamou-os de autoritários, personalistas e verticalistas.

Mais: afirmou que o Exército da Nicarágua, há muitos anos sob as asas de Ortega e Murillo, tem responsabilidade pelo conflito civil que assolou o país em 2018. Foi um ano de ápice de repressão, e uma das vítimas foi a estudante brasileira de medicina Raynéia Gabrielle Lima.

“Prendê-lo em sua casa é uma maneira de fazer um chamado”, diz Mónica Baltodano, também ela uma ex-guerrilheira que conformou os primeiros governos sandinistas mas hoje vive exilada na Costa Rica com a família após ter a nacionalidade e os bens confiscados por se opor ao regime junto a centenas de outros opositores.

“É uma mensagem para a população de que, se em algum momento falam contra o regime, a ditadura irá atrás deles, já que faz isso até com o próprio irmão”, segue ela, que conheceu de perto os irmãos Ortega.

Baltodano já está calejada, mas novamente sentiu os efeitos do regime. Após publicar no começo da semana um artigo sobre o caso Humberto, teve sua única propriedade restante confiscada por Manágua.

O peso da declaração está não apenas na relação familiar, mas na história de Humberto. Como o irmão ditador, ele foi um dos líderes sandinistas que derrubaram a ditadura de Anastasio Somoza em 1979. Os dois ingressaram na guerrilha ainda no ensino médio, e Humberto tinha até mais destaque do que o irmão, descrito por alguns que o conheceram como uma figura até então marginal e opaca.

Após o triunfo do que foi cunhado como a Revolução Sandinista, ele assumiu a fundação de um novo Exército e o comandou, inclusive quando as eleições de 1990 tiraram seu irmão do poder e levaram ao cargo de presidente a oposicionista Violeta Chamorro.

Sob vários acordos, Humberto liderou uma transformação nas Forças Armadas para que se tornassem um aparato nacional e não partidário, além de sob um comando civil. É bem diferente do que ocorre ao longo da última década, durante a qual Daniel Ortega e sua esposa cooptaram o aparato militar para funcionar em prol de sua repressão.

Ainda que sem muita esperança de que haja uma abertura democrática, começam a crescer no país os debates sobre a sucessão de Ortega. Além de o líder ter uma idade já avançada, as poucas informações que se têm sobre seu círculo pessoal apontam que sua saúde não vai bem. Cogita-se que Murillo ou Laureano, filho do casal ditatorial, poderiam ocupar esse lugar sem eleições livres e limpas.

Além de avançar contra Humberto, Manágua acaba de expulsar do país a americana Judy Butler, 84. Ela chegou à Nicarágua nos anos 1980. Era uma simpatizante dos sandinistas e realizava trabalhos de tradução para Humberto, que publicava artigos na imprensa local.

Ao Infobae pessoas próximas a ela relataram que Judy Butler está praticamente cega e fazia uso de tecnologia para seguir traduzindo. Sua casa está agora ocupada pela Polícia Nacional.

Ainda que uma figura cujas críticas ao regime têm um peso evidente, Humberto é uma personalidade polêmica. Aos que ainda justificam a ditadura, é visto como alguém que se alinhou à oposição na época Chamorro. Por outros, é visto como alguém que se afastou da política nas últimas décadas sem pleitear transformações. E há ainda a zona cinzenta em torno de como teria se dado seu enriquecimento pessoal.

O recrudescimento da repressão de Ortega-Murillo e o perfil fechado ao diálogo do regime fizeram figuras que antes falavam com eles fecharem as portas, como foi o caso do presidente Lula (PT). Desde que o petista tentou negociar no ano passado com Ortega a liberação de uma liderança católica em Manágua e recebeu silêncio, ele deixou de insistir, nas palavras de um dos envolvidos na conversa.

Desde o ano passado, não há nenhuma atividade bilateral entre os dois países. Todas as áreas de cooperação, como de alimentação escolar, saúde e agricultura, estão congeladas. Recentemente, a nova embaixadora de Manágua no Brasil recebeu aval do governo brasileiro para atuar, mas a ação não mudou em nada o congelamento das ações.

“É preciso debilitar a base repressiva dessa ditadura”, diz Mónica Baltodano. “E esse enfoque dinástico, absolutamente superado na história. Todas as ditaduras terminaram por desgastes gerados por seus próprios atos. Quanto um povo acumula tanto esgotamento e medo, há uma resposta. Esse terror tem prazo de validade.”

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