Ministério da Saúde diz que governo do AM é responsável por caso de indígena encontrado morto

MANAUS, AM (FOLAHPRESS) – O Ministério da Saúde atribui ao governo do Amazonas a responsabilidade pela regulação, remoção, internação e definição de acompanhamento da mulher madiha kulina transferida para Manaus em razão de complicações na gravidez. O marido dela, Tadeo Kulina, 33, que a acompanhava, desapareceu da maternidade e foi encontrado morto, com pancadas na cabeça.

O transporte de Tadeo, que deixou sua aldeia na Terra Indígena Kulina do Médio Juruá, na região de Envira (AM), e percorreu 1.200 km em voo até Manaus, a maior capital da Amazônia, foi responsabilidade do governo estadual, segundo o ministério.

A reportagem enviou questionamentos ao governo do Amazonas ainda na tarde desta quinta (29), mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

A Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Civil também não responderam sobre o andamento das investigações.

Ao ser incluído no voo como acompanhante da mulher, não cabia acompanhamento de profissional de saúde indígena, diz o Ministério da Saúde. “O transporte de pacientes que estão em hospitais não é realizado pelo DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Médio Rio Solimões e Afluentes e sim pelo estado”, afirma a pasta, em nota enviada à Folha.

“A paciente, que foi atendida por uma unidade de saúde do estado, foi transferida pelo estado e internada em unidade hospitalar, a Maternidade Ana Braga de Manaus”, diz a nota. “O transporte foi realizado via TFD (tratamento fora do domicílio), da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas, diretamente pelo hospital de referência do município.”

O deslocamento aéreo ocorreu por meio do Sister, “um sistema do complexo regulador do estado do Amazonas responsável pelo gerenciamento de pacientes”.

“O acompanhamento de um profissional da equipe multidisciplinar de saúde indígena não era possível, visto que a paciente já tinha um acompanhante, o indígena Tadeo Kulina, e o seu processo de remoção para Manaus foi realizado via Sister”, acrescenta o Ministério da Saúde.

Segundo a pasta, uma equipe do DSEI só foi comunicada sobre o desaparecimento do indígena quase 24 horas depois do ocorrido.

A comunidade dos madihas kulinas está numa área de difícil acesso na Amazônia, já perto do Acre, ao sul do Vale do Javari (AM). É um povo de recente contato, que vive da caça, da pesca e da roça.

Após horas de voo, no dia 1º de fevereiro, Tadeo e a mulher chegaram à Maternidade Ana Braga, na zona leste da cidade. O parto foi feito, o bebê nasceu, e a mãe e a criança se recuperaram bem nos dias seguintes, após os riscos que correram.

Tadeo, que falava pouco a língua portuguesa, desapareceu do hospital no dia 7. Foi encontrado dias depois, morto, com sinais de espancamento na cabeça, no IML (Instituto Médico Legal). O corpo retornou à terra Kulina do Médio Juruá, num voo de volta. No mesmo avião, com o caixão, estavam a mulher e o bebê recém-nascido.

O homicídio do madiha kulina -o boletim de ocorrência na Polícia Civil do Amazonas registra o episódio como homicídio simples- é um caso com muitas perguntas sobre o que de fato ocorreu, do desaparecimento à morte. Há sinais de descaso e omissão em relação ao casal e mais uma evidência do tratamento dispensado a esses indígenas nos núcleos urbanos.

O MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas abriu um procedimento preliminar de investigação, na esfera cível, para apurar eventual omissão por parte da área de saúde indígena. As primeiras diligências já foram feitas, com pedidos de informações aos órgãos de saúde que atenderam os indígenas, e também haverá depoimentos.

A região do médio rio Juruá, onde estão os madihas kulinas e onde vivia Tadeo, é atendida pelo DSEI Médio Rio Solimões e Afluentes. Em Manaus, há uma Casai (Casa de Saúde Indígena) para o acolhimento de indígenas que precisam se deslocar à capital para tratamento médico. A Casai também integra a estrutura do SUS para atendimento em saúde indígena.

Segundo o Ministério da Saúde, uma equipe técnica do DSEI, com atuação na Casai em Manaus, esteve na maternidade por duas vezes para visitar a paciente. A primeira visita ocorreu no dia 2, sem possibilidade de encontro com a paciente, que se recuperava de uma cesariana. A segunda se deu no dia 6, quando foi solicitada uma testemunha para o registro de nascimento.

“De acordo com o serviço social da unidade hospitalar, Tadeo Kulina queria sair da maternidade com a esposa e o recém-nascido, que se recuperavam, e também estava tendo visões de pessoas o perseguindo, e segundo ele, a polícia queria prendê-lo”, afirmou o ministério.

Essa versão é refutada por indígenas madihas kulinas que conheciam e conviviam com Tadeo. Eles afirmam que o homem não tinha problemas psicológicos ou psiquiátricos. A mulher de Tadeo também disse, em conversas após o regresso à terra indígena, que não houve alucinações ou algo do tipo no hospital.

“O DSEI realizou, por conta própria, buscas pelo indígena pelos arredores da unidade de saúde, ruas e bairros da redondeza, mas não obteve êxito. Em seguida, a equipe foi ao 19º Distrito Integrado de Polícia de Manaus para registrar o boletim de ocorrência do desaparecimento de Tadeo Kulina. No dia 9, a equipe do DSEI continuou as buscas”, disse o ministério.

Na região do médio Juruá, distante 1.200 km de Manaus, a realidade dos madihas kulinas é de violência e abandono, com multiplicação de relatos de mortes violentas, suicídios e exploração a partir da retenção de cartões de benefícios sociais nas cidades da região. Esta realidade foi denunciada, em 11 de maio de 2023, ao escritório da ONU para prevenção de genocídio.

Relatórios e fotos registram um quadro de desnutrição infantil, insegurança alimentar, alcoolismo e estupro entre indígenas.

Após a Folha de S.Paulo mostrar o conteúdo dos relatórios, em reportagem publicada em setembro de 2023, o MPI (Ministério dos Povos Indígenas) anunciou a criação de um grupo para tratar do assunto. Meses depois, o governo não agiu e os problemas persistem, segundo o MPF.

Na aldeia onde Tadeo vivia, e nas aldeias vizinhas, os indígenas estão consternados e temerosos de buscar Manaus para tratamentos de saúde em casos complexos. Esse fluxo ocorre com frequência, mais de uma vez ao mês.

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