PEQUIM, CHINA (FOLHAPRESS) – As cenas de pancadaria no Parlamento de Taiwan correram mundo afora e fizeram o presidente eleito, Lai Ching-te, adiantar-se ao seu aguardado discurso de posse desta segunda-feira (20), publicando em mídia social um apelo aos partidos do próprio governo e da oposição.
“Partilho as preocupações de todos sobre o Yuan e o futuro de Taiwan”, escreveu Lai, usando o nome dado ao Parlamento da ilha. “Espero que os partidos voltem a ter discussões racionais, para que seja restabelecido o funcionamento das deliberações.”
Em seguida, uma autoridade anônima do novo governo chamou veículos como a agência taiwanesa CNA para adiantar que o discurso de posse defenderá estabilidade, dando continuidade ao governo cessante, em que Lai é vice-presidente, e a manutenção do status quo nas relações com a China.
A violência da última sexta-feira foi durante a leitura da reforma que amplia poderes de fiscalização do governo pelos parlamentares. Foi proposta pelos oposicionistas Kuomintang (KMT) e Partido do Povo de Taiwan (PPT), que agora controlam o Legislativo, e questionada pelo Partido Democrático Progressista (PDP), de Lai.
No domingo (19), na capital, Taipé, o PPT realizou manifestação pela reforma parlamentar e outras, em que seu líder Ko Wen-je cobrou de Lai promessas feitas anteriormente de apoio às mudanças. O Legislativo volta ao tema na terça-feira (21), quando está prevista nova manifestação, esta do PDP, contra a reforma.
Antes mesmo de Lai se adiantar ao discurso de posse, a expectativa era de moderação do novo presidente. Ele fez carreira prometendo a independência da ilha, mas já na campanha procurou se conter.
Após uma recaída na reta final, quando falou em mudar a Constituição, ele se retratou –e agora reafirmou, em mídia social: “cumprirei a Constituição”, que estabelece a ilha como República da China. Para Pequim, a China continental e Taiwan são duas partes de uma só China.
Com essa “abordagem moderada” de Lai e o “foco de Washington nas eleições de novembro, é improvável que as tensões aumentem em torno de Taiwan até pelo menos o final do ano”, avalia Amanda Hsiao, especialista em China no think tank europeu International Crisis Group e natural de Taiwan.
Por outro lado, acrescenta, Pequim adotou ações ostensivas recentes, como as patrulhas regulares em torno da ilha de Kinmen, parte de Taiwan, mas situada a seis quilômetros do continente –após a morte de dois pescadores chineses em fevereiro, numa operação não esclarecida da guarda costeira taiwanesa.
A avaliação de Hsiao é corroborada por Yan Zhensheng, professor de ciência política da Universidade Nacional de Taiwan, a principal da ilha. Ele projeto que, ” pelo menos no início, é improvável que Lai assuma uma postura pró-independência”. Mas também “é improvável que ofereça qualquer tipo de trégua a Pequim”.
Paralelamente, Yan observa que, pelos atritos das últimas semanas, “as Filipinas transformaram o mar do Sul da China, em vez do estreito de Taiwan, num desafio mais sério de segurança, com Pequim e Manila num clima de confronto e prontos para ver qual lado vai piscar primeiro”.
Para Hsiao, “o potencial para uma escalada no mar do Sul da China cresceu pela possibilidade de acontecer um incidente não intencional, mas nem Pequim nem Washington querem entrar em conflito direito e vão agir com alguma contenção.”
Autoridades chinesas levantaram diversos alertas sobre Taiwan nos últimos dias. O porta-voz do Ministério da Defesa, Zhang Xiaogang, citou nominalmente o PDP e os Estados Unidos, prometendo “contramedidas decisivas a quaisquer atividades separatistas e conivência estrangeira”. Outros órgãos, inclusive a Embaixada da China no Brasil, esta em videoconferência, manifestaram-se na mesma direção.
Mais do que militar, a sombra para o governo Lai está no Legislativo dominado pela oposição. Além da reforma que amplia seu poder de vigilância sobre o executivo, entre outras, a expectativa é que volte ao plenário um plano de acordo comercial com a China.
Mais de oito anos atrás, ele estava para ser implementado, pelo governo então nas mãos do KMT, quando foi inviabilizado por grandes manifestações, que acabaram levando o PDP ao poder logo em seguida. Desta vez, tanto KMT como PPT apoiaram, ao longo da campanha, ampliar o comércio com o continente.
Para Yan, “a oposição tentará ressuscitar relações comerciais mais estreitas com a China. Isso ficou óbvio na visita de legisladores a Pequim no mês passado”. No lado dos apoiadores do governo, a esperança é reativar as manifestações de 2016 –e as cenas de sexta seriam prenúncio disso.
O PDP, que havia perdido as ruas para o PPT, partido hoje mais identificado com os estudantes taiwaneses, busca retomar a iniciativa. “Acho que o público está mais inclinado para o PDP depois do caos de sexta”, diz Wang Shih-Han, comerciário e partidário de Lai, estimando que haverá muitas pessoas no protesto de terça.
Para tanto, ele espera um Lai mais ativo, disposto a “fazer o que for necessário, para defender ou atacar”. Vem aí “um tempo caótico”, projetou, com KMT e PPT apresentando “projetos inclinando Taiwan para a China” e, a partir daí, “impasse político” na ilha.
A posse nesta segunda terá representantes dos EUA, mas não com mandato. Foram anunciados um ex-assessor econômico do presidente democrata Joe Biden, Brian Deese, e o subsecretário de Estado do ex-presidente republicano George W. Bush, Richard Armitage. Os enviados de Japão e Alemanha também serão menos graduados.
Como Taiwan é reconhecida diplomaticamente por apenas 12 países, o principal líder esperado para a posse é o presidente do Paraguai, Santiago Peña. O da Guatemala, Bernardo Arévalo, ficou de enviar seu chanceler.A
LINHA DO TEMPO DE TAIWAN
- 1601-1682: Ilha não tem autoridade central. É parcialmente ocupada por europeus e exilados da dinastia Ming por algumas décadas
- 1683-1894: Torna-se parte da China sob a dinastia Qing
- 1895: Torna-se colônia do Império do Japão após ele vencer a primeira guerra sino-japonesa
- 1945: Obrigado a ceder seus territórios no exterior após a Segunda Guerra Mundial, o Japão devolve a ilha à então República da China
- 1949: Governo da República da China se transfere para a ilha após o Partido Nacionalista (Kuomintang, KMT), de Chiang Kai-shek, ser derrotado na guerra civil pelo Partido Comunista, de Mao Tse-tung; chineses de diversas províncias continentais se mudam para a ilha (hoje respondem por 15% da população) e se juntam aos descendentes de grupos que migraram das províncias de Fujian e Guandong nos séculos anteriores (hoje 80% dos habitantes).
- 1950-1959: Com apoio dos EUA, a República da China implementa uma reforma agrária que abre caminho para maior produção agrícola e crescimento econômico; prosperidade rural estimula o desenvolvimento industrial e urbano
- 1960-1969: Investimentos da década anterior levam a um “milagre econômico”, com taxas anuais de crescimento do PIB que chegam a dois dígitos
- 1971: República da China, conhecida como China nacionalista, perde sua cadeira na ONU para a República Popular da China ou China continental, e a ilha passa a ser tratada no exterior como Taiwan ou Formosa; industrialização voltada para exportação se acelera nos anos 1970, partindo de têxteis para os aparelhos eletrônicos
- 1985: Ministro Li Kwoh-ting contrata o executivo Morris Chang para comandar a expansão de chips na ilha, dizendo a ele, segundo a lenda, “Queremos uma indústria de semicondutores, quanto dinheiro você precisa”; a TSMC é fundada dois anos depois
- 1987: É suspensa a lei marcial vigente desde 1949 e começa a democratização da ilha
- 1992: República da China e República Popular da China aceitam o princípio de uma só China, mas, segundo Taipé, podendo definir separadamente o que é China
- 1996: Primeiras eleições presidenciais culminam com vitória do KMT
- 2000: Primeira vitória do Partido Democrático Progressista inicia a alternância no poder; dois mandatos de Chen Shui-bian terminam marcados por corrupção, conflitos étnicos e deterioração das relações com China e com EUA
- 2008: Efeitos da crise financeira nos EUA atingem taxas anuais de crescimento, que baixam de patamar a partir daí
- 2014-2015: Então no fim do segundo mandato, presidente Ma Ying-jeou (KMT) vê seu projeto de acordo comercial com a China ser inviabilizado por protestos
- 2016: Tsai Ing-wen (PDP) é eleita presidente e rejeita o princípio de uma só China; seus dois mandatos são marcados por redução de contatos com Pequim e aproximação com Washington, inclusive por meio da compra de caças, mísseis e tanques
- 2022: A então presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, visita Taiwan, ampliando a deterioração nas relações com Pequim, que cerca a ilha e passa a fazer exercícios militares intermitentes
- 2024: Lai Ching-te (PDP), vice de Tsai, é eleito presidente de Taiwan, mas a oposição obtém maioria no Legislativo