(FOLHAPRESS) – Em meio a um intenso dia de combates na Ucrânia e com direito a disparo de mísseis pela Coreia do Norte, o presidente Vladimir Putin recebeu o ditador Kim Jong-un em uma base de lançamento de mísseis no Extremo Oriente da Rússia.
No início do encontro, Kim disse a Putin que ele tem seu “total apoio na luta sagrada contra as forças hegemônicas”, em português o Ocidente liderado pelos Estados Unidos, que apoiam a Ucrânia contra a invasão promovida pelo russo em 2022.
Mais tarde, o norte-coreano brindou: “O Exército russo e seu povo vão certamente ganhar uma grande vitória na luta sagrada pela punição do grande mal que clama hegemonia e alimenta ilusão expansionista”.
Se não houve menções explícitas ao que todos observadores creem ter sido o objetivo central do encontro, o acesso do Kremlin ao vasto arsenal de munição pesada norte-coreana para emprego na guerra, sobraram sugestões de que isso estaria garantido.
Putin afirmou a repórteres antes da reunião que “todos os assuntos” estariam na mesa, ao ser questionado sobre armas. Já o ministro russo Serguei Choigu (Defesa) disse que o Ocidente havia rompido qualquer regra ao enviar equipamento soviético de países ex-comunistas membros da Otan [aliança liderada pelos EUA]. Nações como a Polônia doaram tanques T-72 e caças MiG-29 a Kiev no curso do conflito.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, por sua vez afirmou que Moscou não iria “tolher sua relação” com Pyongyang devido às sanções existentes e aprovadas pela Rússia no Conselho de Segurança da ONU contra o comércio de armas com a ditadura.
“A União Soviética teve um papel central na fundação de nosso país. Nós sempre iremos apoiar o presidente Putin e a liderança russa, e vamos estar juntos na luta contra o imperialismo”, afirmou Kim, que levou consigo altas autoridades militares, inclusive o responsável pelo Departamento da Indústria de Munições do seu país, Jo Chu Ryong.
A contrapartida também teve uma face pública. Antes do início da reunião, Putin foi questionado sobre o fornecimento de tecnologia de foguetes e satélites à Coreia do Norte, que fracassou em dois lançamentos de satélites espiões neste ano. “Foi para isso que viemos aqui”, afirmou, referindo-se ao cosmódromo de Vostótchni, na remota região de Amur.
“A RDPC [República Democrática e Popular da Coreia, nome oficial da ditadura de Kim] mostra grande interesse em engenharia de foguetes, e também em desenvolver a área espacial”, afirmou Putin. Desde o ano passado, Pyongyang também tem acelerado seu programa de mísseis balísticos, testando modelos mais eficazes para tentar levar suas ogivas atômicas a alvos até nos EUA.
Tecnicamente, o foguete que leva um satélite à órbita terrestre é muito parecido com aquele empregado para voos intercontinentais. A Coreia do Norte já testou com sucesso os últimos modelos, inclusive com suspeita de ajuda russa na área de motores, mas agora isso pode ir a novo patamar.
O encontro entre o recluso ditador e o isolado presidente foi cercado de segredos, até porque Kim levou três dias para chegar até Vostótchni, quase 3.000 km distantes na viagem em seu trem blindado desde a capital norte-coreana.
Os dois se encontraram por volta das 14h (2h em Brasília) e, após falar com repórteres, visitaram o cosmódromo aberto em 2016 para aliviar a dependência de Baikonur, base no Cazaquistão usada desde os tempos em que o país fazia parte da União Soviética e que Moscou poderá alugar até ao menos 2050.
“A glória da Rússia, que deu à luz os primeiros conquistadores espaciais, será imortal”, escreveu Kim em um livro de visitantes. Putin lhe mostrou instalações, inclusive a linha de montagem do novo foguete espacial russo, o Angara.
Depois, os líderes conversaram com suas delegações por cerca de duas horas, o que sugere que quaisquer acertos mais detalhados já haviam sido acertados previamente na visita de Choigu a Pyongyang para celebrar os 70 anos do armistício da guerra que dividiu a península coreana -como, de resto, ocorre em qualquer negociação no mundo.
Por volta das 17h30 (5h30 em Brasília), Putin recebeu Kim para um “almojanta” cujo menu era iniciado com salada de pato, figo e nectarina, pelmeni (bolinho de massa fina) recheado de caranguejo-gigante de Kamtchatka, sopa de peixe do rio Amur e sorbet de fruto silvestre. Para o prato principal, escolha entre esturjão com cogumelos ou filé marmorizado com vegetais.
Por fim, frutas silvestres e nozes com leite condensado. Tudo regado por vinhos tintos e brancos do sul da Rússia. Mantendo o véu de segredo da cúpula, em cerca de uma hora as agências estatais russas afirmavam que Kim já havia deixado Vostótchni, o que parece improvável com o extenso cardápio anunciado.
Enquanto a coreografia ocorria, a Ucrânia tinha um dia agitadíssimo, com os ataques inéditos com dez mísseis de cruzeiro contra a Frota do Mar Negro em Sebastopol, na Crimeia, e o bombardeio do porto ucraniano de Izmail pelos russos. Até Kim participou simbolicamente, lançando dois mísseis balísticos por 650 km até caírem no mar do Japão, como que celebrando seu encontro com Putin.
Motivo, ele tinha. Após o fracasso de negociações com os EUA em 2019 e com a pandemia, o regime fechou-se mais ainda e o grau de animosidade com o Sul apoiado por Washington cresceu a níveis não vistos nas últimas décadas. Ameaças nucleares de lado a lado e exercícios militares constantes tornaram a península coreana novamente um ponto agudo nas relações internacionais.
A visita oficializou a entrada de Kim na Guerra Fria 2.0, nome genérico dado ao embate geopolítico do bloco ora liderado pela China com a aliada Rússia contra os EUA e seus parceiros. Manobras conjuntas entre os três países poderão ocorrer. Ao longo das décadas, seu pai e avô também sentaram à mesa de líderes de Moscou, mas com o pires na mão. Agora, o ditador tinha algo a oferecer.
Em troca, além da cooperação espacial e provavelmente acordos não conhecidos de fornecimento de alimentos para Pyongyang, está um reconhecimento diplomático no jogo em curso no mundo, o que pode tanto acirrar os ânimos com Sul quanto moderar o voluntarismo americano nas relações na região -que inclui uma aberta militarização do Japão, que trabalha em coordenação com Washington e Seul.
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