(FOLHAPRESS) – Em 1988, Daniela Mercury e Ilê Aiyê integravam a mesma gravadora –ela, prestes a iniciar carreira solo, e eles, preparando o segundo álbum. Em uma conversa, a cantora perguntou ao fundador do bloco afro, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, se poderia cantar em um ensaio deles, no bairro da Liberdade, em Salvador.
“Ele falou, ‘mas você não sabe cantar só com percussão, sem instrumentos de harmonia, né?'”, diz Mercury. “Disse que eu me arriscava. E estava lotado. Era minha primeira vez ali, na praça, a banda com uns 80 percussionistas. Cantei músicas deles, coisas de outros blocos afro, ‘Aquarela do Brasil’, fui misturando. Uns dias depois, meu empresário disse que Vovô ligou, dizendo que a negrada gostou da branquinha, e quanto era o cachê para fazer a Noite da Beleza Negra.”
Aquele encontro foi definitivo para a carreira de Mercury, que nunca mais parou de frequentar os ensaios do Ilê Aiyê, já gravou diversas músicas e usou levadas de percussão do bloco em seus álbuns. Também teve importância para o primeiro bloco afro do Brasil, que este ano completa cinco décadas de existência, e teve na cantora uma propagadora de suas músicas fora da Bahia –no resto do Brasil e também ao redor do mundo.
Mercury vai levar os músicos do Ilê Aiyê, além de Margareth Menezes, a seu show no palco do tradicional Festival de Verão Salvador, que em 2024 completa 25 anos de existência.
O evento acontece nos dias 27 e 28, e com encontros como Carlinhos Brown e BaianaSystem, Psirico e Baco Exu do Blues, Iza e Liniker, Bell Marques e Claudia Leitte, Léo Santana e Luísa Sonza, Péricles e Gloria Groove, Seu Jorge e Mano Brown e Thiaguinho e Maria Rita, além de Caetano Veloso cantando “Transa” e Ivete Sangalo, entre outros.
Mas menos de 15 anos antes daquele primeiro encontro, o Ilê Aiyê sequer existia. Numa época de ditadura militar, Salvador, a cidade com maior população negra fora do continente africano, era “bastante restritiva” para esse extrato social, segundo Vovô do Ilê.
“O negro sempre foi vilão, até provar que não era”, ele diz.
“Então, nossa estética era muito restrita. Não usávamos roupas coloridas –negro de vermelho diziam que era o diabo. O cabelo era cortado na máquina zero, diziam que era ruim, cocô de boi. Na escola, tinha muito apelido. E começamos a observar também que, no Carnaval da Bahia, os principais blocos não tinham negros.”
Os anos 1970 marcaram a ascensão dos movimentos de afirmação da identidade e valorização dos fenótipos negros, especialmente vindos dos Estados Unidos. Das imagens na revista Ebony à música e capas de discos de James Brown, Marvin Gaye e Jackson 5, o “black is beautiful” influenciava os bailes soul do Rio de Janeiro e chegava até o bairro da Liberdade, em Salvador.
Inspirado pelos Panteras Negras, Vovô queria dar o nome de black power, ou poder negro, ao bloco que criou, mas o medo da repressão fez com que sua progenitora, a ialorixá Mãe Hilda, o aconselhasse a mudar de ideia.
Em iorubá, “ilê” significa “casa” e aiyê, “terra” –ou “a casa dos negros”–, e foi já com esse nome que o bloco, visando o resgate do orgulho negro, tomou a Ladeira do Curuzu, no Carnaval de 1975, seu primeiro.
Eram cem pessoas, diz Vovô, já que muita gente deixou de ir com medo da repressão da ditadura. No segundo ano, foram 400, contra 700 no terceiro e, desde 1978, o bloco “nunca mais saiu com menos de mil pessoas”.
Ele recorda que o medo era justificado, já que a polícia “não sabia como lidar com aquele monte de negros reunidos”. “Nessa época, já usávamos uma estética de negro americano –cabelo black power, calça boca de sino, sapato cavalo de aço, aquelas camisas, saia plissada.”
Os blocos populares, diz Vovô, já sofriam repressão da polícia, “imagine quando surgiu um declaradamente negro”. Ele afirma que o bloco tinha que pedir autorização do governo para ensaiar, e esses encontros, quando não eram cancelados, aconteciam com presença da polícia.
“A polícia estava sempre presente com uma patrulha, com uns pedaços de pau grandes, batiam nas pessoas. Não tinha tiro, mas às vezes o pessoal saía na mão. E os ensaios eram suspensos. No Carnaval a polícia ia acompanhando a gente. Nessa época, a juventude negra desfilava nos blocos de índio e, com o surgimento do Ilê, a cidade tomou um susto. Na imprensa, fomos taxados de racistas, disseram que estávamos a serviço dos russos.”
Antes do Ilê, Salvador já contava com os afoxés –como o Filhos de Gandhy–, que não são blocos de Carnaval. São o candomblé trazido para a rua, com seus rituais, vestes, adereços, danças e cânticos. Os atabaques são tocados com as mãos e as músicas são todas religiosas.
Já o Ilê, e depois os outros blocos afro que se espalharam pelo Brasil, surgiram desatrelados da religião. No caso do bloco de Vovô, a música é até hoje um samba tocado com baquetas, que mistura elementos do samba de roda, do Recôncavo Baiano, com o ijexá. Nunca houve instrumentos de melodia, só voz e percussão.
Nos anos 1980, o Olodum, com Neguinho do Samba, consolidou o samba-reggae, mas o Ilê nunca aderiu essa batida. O som característico do Ilê está encapsulado em álbuns como os dois volumes de “Canto Negro”, de 1984 e 1989.
Mas mesmo antes de entrar em estúdio, o Ilê já era conhecido fora do Carnaval baiano através de Gilberto Gil, que em 1977 gravou sob o nome “Ilê Ayê” a música “Que Bloco é Esse?” –composição de Paulinho Camafeu que foi tema do primeiro desfile do bloco–, e Caetano Veloso, que registrou “Depois Que o Ilê Passar” em disco, em 1987.
Em 1988, já após o fim da ditadura militar no Brasil, os sambas dos blocos afro estavam em ascensão na Bahia. “Era um momento de explosão”, diz Mercury. “O ano principal de ‘Faraó (Divindade do Egito)’ é 1988, e no ano seguinte eu gravo ‘Swing da Cor’, do [mesmo autor de ‘Faraó’] Luciano Gomes.”
Mercury foi protagonista na popularização das batidas e músicas dos blocos afro na virada da década, uma marca indelével do axé. Uma peça fundamental nesse processo foi Ramiro Musotto, músico nascido na Argentina e profundo pesquisador da percussão baiana, que registrava em samples e destrinchava os desenhos das batidas que os baianos, diz a cantora, “absorvem no ouvido, na mão e no corpo”.
Segundo o livro “O Canto da Cidade: Da Matriz Afro-baiana à Axé Music de Daniela Mercury”, de Luciano Matos, foi ele quem sintetizou em estúdio o arranjo de percussão presente em “O Mais Belo dos Belos” – música do Ilê Aiyê registrada no disco “O Canto da Cidade”, da cantora. Musotto tocou diversos instrumentos, ao lado de apenas dois percussionistas, diz o livro, “fazendo soar como se fosse a percussão completa do Ilê”.
“O Mais dos Belos” apareceu no segundo e mais bem-sucedido álbum de Mercury emendada com “O Charme da Liberdade”, outra canção do Ilê. Aquele disco, lançado em 1993, e hoje com cerca de 3 milhões de cópias vendidas ao redor do mundo, fez da artista uma estrela em ascensão da música brasileira.
Vovô do Ilê lembra que, naqueles primeiros encontros no fim dos anos 1980, havia um receio em se aproximar com uma cantora branca. “Era assim, ‘rapaz, lançamento de disco do Ilê, e essa menina branquinha aí… vamos ver no que vai dar'”, diz. “Mas nosso papo nunca foi separatismo. A gente busca liberdade e igualdade. E depois ela começou a frequentar os ensaios do Ilê.”
Para Vovô do Ilê, a criação dos blocos afro “foi o que fortaleceu a axé music”. E Mercury, ele diz, “é a única cantora do axé, branca, que não tem medo dos tambores”. “Ela se identifica e nem precisa ensaiar, canta de ouvido. Antes era só o Ilê, mas hoje ela vai para todos. E é muito bem recebida. No verão, trava a agenda e pergunta que dia pode ir. Como dizem, a branquinha mais pretinha da Bahia é ela.”
Ele ainda afirma que o diferencial da cantora é que “em qualquer lugar do mundo que vai, tem música de bloco afro no repertório”. “São músicas que informam os brancos e empoderam o povo negro. Ajuda a combater o racismo. Vejo outros artistas que cantam de tudo, mas não cantam música de bloco afro.”
Para o show no Festival de Verão, eles ainda não tinham preparado o que iam fazer quando falaram com a reportagem. O certo é que essa relação foi decisiva para o axé e a música baiana nos últimos 30 anos. Como diz Carlinhos Brown no livro de Luciano Matos, “o Ilê Aiyê é um dos maiores responsáveis pela reafricanização no Brasil”, e Mercury “uniu a cidade nesse cantar”.
Existiria Daniela Mercury como conhecemos sem o Ilê Aiyê? “Não”, ela diz. “Fiz até uma canção de amor para o Ilê, ‘Dara’. Para mim, é o bloco mais bonito da cidade, o que mais me inspirou como artista, desde a dança até a música. Sempre que estou lá, me sinto em casa, é onde me identifico na minha cidade. É o som que me move, mobiliza e emociona. Meu trabalho todo foi desenvolvido com MPB e sambas afro. É o que escolhi fazer.”
FESTIVAL DE VERÃO SALVADOR
Quando: 27 e 28 de janeiro, às 15h
Onde: Parque de Exposições – av. Luís Viana Filho, 1590, Itapuã – Salvador (BA)
Preço: a partir de R$ 97,90
Classificação: 14 anos
Link: https://bileto.sympla.com.br/event/88040/d/222329
Transmissão: Multishow e Globoplay; TV Globo exibe os melhores momentos.
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