Haiti deve ter nova missão multinacional para combater violência armada

(FOLHAPRESS) – Mais de dez pessoas morrem a cada dia, em média, no Haiti, como consequência direta da violência ligada às gangues armadas. Estupros se tornaram uma forma corriqueira de ameaça, e a fome, realidade de metade da população local, avança a galope.

A expectativa de içar o país do cenário de caos humanitário, político, econômico e securitário está agora no Conselho de Segurança, a mais alta instância da ONU, da qual o Brasil é membro rotativo e exercerá a presidência em outubro. Espera-se que, até lá, o grupo vote resolução para criar uma força multinacional de apoio à polícia haitiana.

Para a ONU, o Brasil tem papel-chave nas negociações, diz María Isabel Salvador, a representante do secretário-geral da organização, António Guterres, no Haiti. A equatoriana esteve em Brasília na primeira semana de setembro e se refere ao Brasil -em especial sob o governo Lula- como um “irmão mais velho” na América Latina.

Mas, para além da liderança regional, o interesse está nos laços de Brasília com os outros membros do Brics. O ruído para a aprovação de uma força multinacional no Conselho de Segurança, afinal, parte de Rússia e China, membros permanentes e, portanto, com poder de veto. “Sugeri que o governo Lula poderia nos ajudar a reduzir a resistência russa e chinesa, e ouvi que veriam o que era possível fazer.”

Do lado russo, pesa a tensão com o Ocidente devido à guerra em curso na Ucrânia. Do chinês, o fato de o Haiti ser um dos 14 países que reconhecem Taiwan, uma província rebelde na ótica de Pequim, como autônoma. Pessoas envolvidas no assunto ponderam que Rússia e China poderiam se abster ou, então, aprovar o texto por consenso, mas com ressalvas, para não desagradar a parceiros latino-americanos.

Mesmo entre os membros do Conselho de Segurança favoráveis à proposta -e o Brasil pende para esse lado- há mais dúvidas do que certezas sobre o texto patrocinado pelos Estados Unidos com apoio do Equador. O governo Lula já expressou que não pretende enviar tropas ou ter protagonismo em uma nova missão no Haiti.

Interlocutores do Itamaraty dizem que ainda há pouca clareza sobre o conteúdo e que o Brasil poderia contribuir de maneira pontual, com envio de oficiais com experiência no Haiti, como os que participaram da Minustah, a Missão da ONU que de 2004 a 2017 esteve no país.

Há também disposição para cooperação técnica, em especial na área da saúde -algo que hoje já existe, mas hoje está travado devido à quase impossibilidade de mobilidade na capital Porto Príncipe, que tem cerca de 80% do território controlado pelas gangues urbanas locais.

Até pouco tempo, a principal incógnita para o plano de uma missão multinacional de apoio técnico e de treinamento à polícia nacional haitiana estava em quem lideraria a força.

Até que o Quênia, país do leste da África, ofereceu-se para tomar a dianteira e enviar mil homens. Nações do Caribe também ofereceram pequenos contingentes, mas o volume ainda é inexpressivo, em torno de 1.450 soldados.

María Isabel Salvador, da ONU, estima que no mínimo 2.000 homens seriam necessários -e que um cenário minimamente confortável contaria com 4.000. Mais do que isso, faria diferença na legitimidade da ação a presença de nacionais da América Latina. Os países da região, no entanto, parecem pouco propensos a isso.

Além de Brasília, a enviada de Guterres esteve em Santiago e na Cidade do México. No Chile, ouviu que é inviável abrir mão mesmo que de uma pequena fração de suas forças -os “carabineiros”- dada a crescente sensação de insegurança na capital, aquilo que hoje configura um dos principais desafios do governo de Gabriel Boric.

O drama haitiano é sentido em menor ou maior escala nos países das Américas, destino de uma onda de migrantes. Mais de 45 mil haitianos foram flagrados tentando cruzar a fronteira dos EUA de forma ilegal no primeiro semestre deste ano. Eles também são a terceira nacionalidade que mais cruza o estreito de Darién, a chamada “selva da morte” que é a única rota terrestre da América do Sul aos EUA.

O premiê do Haiti, Ariel Henry, manifesta explicitamente ser favorável à missão e pede que ela seja enviada o mais rápido possível. Mas Henry, na liderança do país desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse em 2021, goza de apoio quase nulo e é chefe de um governo disfuncional, onde não há nem um membro sequer eleito pelo voto popular.

“É preciso institucionalizar o Estado haitiano”, hoje à beira da falência, diz a representante da ONU, segundo a qual isso só será possível quando a crise de segurança for mitigada. Eleições estão praticamente fora do radar, mesmo que o último pleito tenha sido em 2016 e que a ONU pressione pelo estabelecimento de um Conselho Eleitoral.

Hoje, o país nem sequer sabe com exatidão quantas pessoas estão aptas a votar, devido a um problema no sistema de registros. A nação tem cerca de 11 milhões de habitantes.

A despeito dos clamores de Henry, há também oposição doméstica a uma missão externa. O Haiti tem hoje mais de 200 partidos políticos -em comparação, o Brasil, com quase 20 vezes a população haitiana, tem 30 siglas registradas.

Uma das coalizões opositoras com maior capacidade de projeção é o Grupo de Montana, que diz defender “soluções haitianas fora das exigências da comunidade internacional”. María Isabel Salvador afirma que grupos como esse estão “bloqueando o diálogo político” e “demonstram pouca vontade real de ir a eleições gerais”.

Enquanto isso, a população local, em especial os moradores de Porto Príncipe, vê a falência da proteção do Estado. Do início de janeiro à primeira quinzena de setembro, 5.162 pessoas foram, de alguma forma, vítimas da violência atrelada às gangues locais -número compilado pelo Binuh, o Escritório Integrado da ONU no Haiti, que engloba moradores, membros das próprias gangues e policiais.

Entre aqueles que foram assassinados (2.907), ao menos 383 foram linchados. Com a ausência do Estado, um movimento de justiceiros autodenominado “bwa kalé” (“erradicar”, em crioulo haitiano) foi às ruas. Membros de gangues foram mortos apedrejados, mutilados e queimados vivos nas ruas enquanto a polícia nacional “testemunhava passivamente as cenas”, segundo um informe do Binuh.

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