(FOLHAPRESS) – Uma das histórias mais icônicas do universo drag queen, “Priscilla, a Rainha do Deserto” estreia nos palcos brasileiros em junho, com Reynaldo Gianecchini no papel da protagonista Tick/Mitzi. O elenco também conta com Diego Martins no papel de Adam/Felicia, e as atrizes trans Verónica Valenttino e Wallie Ruy se revezam no papel de Bernadette.
A escalação de Giane para o papel principal, no entanto, vem desagradando a comunidade drag, já que o ator tem pouca afinidade com o universo LGBTQIAPN+ e tampouco experiência em teatro musical.
Em entrevista à reportagem, a dupla de cantoras drag Sara e Nina analisou o que está por trás da escolha de Gianecchini para o papel. “Vem crescendo esse interesse em contar as histórias de pessoas trans, drags, travestis. Mas em vez de chamar essas pessoas para narrar suas histórias, chamam pessoas como Reynaldo Gianecchini, que pouco se comprometem, pouco se posicionam, que têm mais passabilidade nos meios onde o dinheiro circula”, critica Gabriel Sanches, que faz a drag Sara.
Alessandro Brandão, que faz a drag Nina, acrescenta: “O que eu acho mais sério está acima do Gianecchini, afinal é difícil dizer ‘não’ quando você recebe um convite. É preciso ter muita consciência social para dizer ‘esse trabalho não é para mim'”, diz. “É um ciclo que precisa ser quebrado lá na origem. Quem tem o poder de convidar o Gianecchini teria o poder de convidar qualquer outro artista drag e dar oportunidade a quem está à margem há tanto tempo.”
Sara e Nina foram, junto com a influencer Valen Bandeira, as anfitriãs do Grande Prêmio da Música Brasileira em 2023, no Teatro Municipal do Rio, na luxuosa edição que teve Alcione como homenageada.
ME SINTO EM ‘LAÇOS DE FAMÍLIA’
O próprio Gianecchini admitiu não ter intimidade com o universo drag e revelou que está precisando correr atrás de habilidades que domina pouco ou quase nada, como a dança e o canto, para tentar atingir o nível de excelência do teatro musical. Em entrevista à CNN, ele comparou a experiência atual ao que viveu em 2000 interpretando o Edu de “Laços de Família”, seu primeiro protagonista em uma novela das 21h, que virou até meme por conta da má atuação de Giane, ainda muito inexperiente na época.
“Só canto no chuveiro”, admitiu. “E cantar em um musical é um preparo bizarro. Eu estou estudante. Vou lá todo dia e tento dar o meu melhor. Dançar, estamos falando de níveis de dificuldade: não é só dançar, é dançar num salto 15, porque é uma drag. O nível de dificuldade é gigante. Me sinto como se eu estivesse lá atrás, em ‘Laços de Família’, que eu resolvi fazer uma coisa muito difícil, que eu não tinha experiência”, comparou.
DESPERDÍCIO DE TALENTOS
Para as artistas drags ouvidas pela reportagem, dar um papel como o de Mitzi a Gianecchini é desperdiçar talentos. “Fico assustado quando vejo um espetáculo com essa envergadura fazer esse tipo de escolha. Por que ele?”, critica Gabriel, que viveu a drag Rubia na novela “Pega Pega”, da Globo, em 2017. “Como, dentro de uma comunidade com tantos artistas fabulosos que cantam, dançam, sabem maquiar, costurar, produzir, criar, não tinha uma que pudesse fazer essa protagonista”, critica.
“Que bom que o Diego [Martins] está lá. Ele se monta, se maquia, canta bem para caramba. Mas essa consciência não podia ter parado ali”, diz. “Não precisa oferecer trabalho para quem já tem sua fatia conquistada, ainda mais se tratando de uma obra tão icônica para a nossa comunidade, como é ‘Priscilla'”, lamenta.
O ator Fagner Saraiva, que faz a drag Papona, acrescenta que a arte drag vem alcançando repercussão, mas ainda falta compromisso das grandes produções com o reparo histórico.
“Precisamos repensar a prática midiática, precisamos falar das que vieram antes. A arte drag tem tomado uma grande repercussão depois de RuPaul, porém é necessário reverenciar as que abriram o caminho, que trouxeram esta arte como uma linguagem específica para nossa luta LGBTQIAPN+. As produções contemporâneas precisam ter um compromisso com isso, para que o apagamento histórico que está curso não se propague mais”, alerta Fagner.
“Verónica Valenttino é um nome forte neste debate sobre ocupação dos espaços por direito, uma travesti nordestina que desbrava São Paulo e coloca sua identidade nas obras, fugindo do padrão eurocêntrico. Assim como a escolha da atriz Wallie. Nestes pontos dá para perceber grandes acertos da produção”, pondera.
Víctor Ivanon, que faz a drag Ivana Wonder, concorda. “Como alguém cogitou colocar uma pessoa que não é drag para interpretar uma drag? Assim como acho estarrecedor quando consideram não escalar uma pessoa trans para interpretar uma pessoa trans”. Mas, para ele, isso é apenas a ponta do iceberg. “Acredito que as questões são muito maiores do que essa situação individual, pequena diante de todos os problemas e adversidades que nós, artistas da comunidade LGBTQIAPN+, enfrentamos”, diz.
Felipe Santo, que faz shows de stand-up comedy como a drag queen Audácia, acredita que a falta de posicionamento político de Gianecchini agrava ainda mais a escolha para o papel.
“Tem no elenco o Diego [Martins] que é drag, que é ator, que é cantor, tem a Verónica Valenttino, que é uma das atrizes mais incríveis em atividade no Brasil hoje, e você vê o Giane ocupando esse lugar que poderia ser tão importante para atores e atrizes que estão fazendo, para além de um bom trabalho, um trabalho político. Não é opcional se posicionar enquanto pessoa LGBTQIAPN+”, diz. “Enquanto tá caindo o pix, beleza, mas se posicionar, ‘levantar bandeiras’, como ele costuma dizer, ele não quer”, provoca.
REFERÊNCIA É XUXA
Em entrevista à revista Caras no Navio da Xuxa, em fevereiro, Gianecchini citou a apresentadora como sua referência para o musical. “Meu próximo papel, meu grande desafio, vai ser fazer uma drag queen. E eu fiquei prestando atenção [em Xuxa]. Ela talvez seja uma grande referência para as drags, porque ela é uma mulher linda que se monta com aqueles figurinos incríveis”, disse. “Ela tem essa alegria, esse humor. É uma grande referência. Fiquei de olho, anotando tudo, para eu tentar roubar alguma coisa. Acho que minha drag vai ser inspirada em Xuxa.”
EDITAL CITAVA DRAG COMO VANTAGEM
O edital de convocação para as audições da peça, divulgado em outubro de 2023, exigia “excelente habilidade de atuação, canto e dança” e acrescentava que “lip-sync e cultura drag são uma vantagem”. Para se inscrever, os candidatos deviam enviar um vídeo performando drag. As audições começaram em dezembro passado e o elenco principal foi divulgado em fevereiro.
Procurada pela reportagem, a produção do espetáculo, afirmou, via assessoria de imprensa, que o elenco foi “escalado a partir de critérios estabelecidos pela direção”.
“O elenco do musical “Priscilla, a Rainha do Deserto” foi escalado a partir de critérios artísticos estabelecidos pela direção do espetáculo, que sempre buscou abraçar a diversidade de gêneros e orientações sexuais da comunidade LGBTQAIP+, tema da montagem que preza, antes de mais nada, por uma jornada de acolhimento e amor entre todas as pessoas”, diz o comunicado.
“Dessa forma, chegou-se a um elenco coerente com a temática abordada no musical, formado por quatro grandes protagonistas -além de outros nomes que serão em breve anunciados- cada qual com suas vivências individuais e caminhos trilhados pelo talento, mas também por preconceitos que precisaram enfrentar ao longo de suas jornadas. Estamos convictos que Reynaldo Gianecchini, Diego Martins, Verónica Valenttino e Wallie Ruy executarão seus papéis, tal qual nas montagens pelo mundo ou mesmo no filme homônimo, com imensa dedicação e maestria, reforçando essa linda história de aceitação e entendimento entre todos.”
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