Como Arlete Salles desafia o etarismo ao protagonizar nova novela da TV Globo

MATHEUS ROCHA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com mais de 40 novelas no currículo, a atriz Arlete Salles estava determinada a diminuir o ritmo de trabalho. “Tinha falado isso para quem quisesse ouvir. Só que foi justamente quando comecei a trabalhar mais.”

No ano passado, ela recebeu dois convites difíceis de recusar. O primeiro para participar de “Dona Lurdes: O Filme”, derivado da novela “Amor de Mãe” estrelado por Regina Casé, e o segundo para protagonizar “Família É Tudo”, novela que estreia nesta segunda-feira (4) na faixa das 19h da TV Globo. “Quando comecei a gravar a novela, estava bem angustiada.” Afinal, na trama de Daniel Ortiz, o trabalho de Arlete é dobrado.

Ela encarna o clichê das irmãs gêmeas opostas. Frida é uma mulher vivaz e amorosa que tenta reaproximar os cinco netos, que se afastaram após a morte do pai. Catarina, por outro lado, é soturna e invejosa. Ela é sustentada pela irmã e se ressente por seu filho não ter direito ao patrimônio dela.

Em um acidente de cruzeiro, Frida desaparece e é dada como morta. O testamento da matriarca deixa a família em polvorosa. Se quiserem ter acesso à fortuna, os netos precisarão morar juntos por um ano e deixar as diferenças de lado.

Quando foi escalada, a atriz se questionou como conseguiria mostrar ao telespectador as diferenças entre duas personagens fisicamente idênticas. Encontrou a resposta no texto de Ortiz.
“Os sentimentos estavam claros ali. Elas representam o bem e o mal. Uma é iluminada, cheia de vida; a outra se recolheu e escolheu o lado mais escuro da vida.”

Apesar de ter mais de cinco décadas de carreira, o frio na barriga que antecede uma estreia não vai embora. “A gente está vivendo esses momentos com muita expectativa e ansiedade. Queremos saber como a história vai bater no público e se ele vem com a gente.”

São preocupações que se tornam ainda mais prementes diante da baixa audiência de “Fuzuê”, antecessora de “Família É Tudo”. Com 19,2 pontos de média em São Paulo, ela se tornou em dezembro a novela das sete menos vista da Globo.

Problema parecido acontece na faixa das seis horas. “Elas por Elas” também se tornou a novela com a menor audiência para o horário. Diante desses números, uma pergunta é quase inevitável -o Brasil está perdendo interesse por novelas?

“Na verdade, acho que existem mais opções”, diz Arlete. “São mais canais, produções e plataformas de streaming. É difícil segurar a atenção do público. Mas acho que ainda teremos sucessos na teledramaturgia. O público sempre vai ter interesse por uma história boa e bem contada.”

Ela mesma já viveu enredos que caíram nas graças do público. Arlete se firmou na teledramaturgia em razão da verve cômica de suas personagens. Exemplos disso são a espalhafatosa Miriam, da novela “Bravo!”, de 1975, e a interesseira Laura, de “Selva de Pedra”, no ar entre 1972 e 1973.

Escrita por Janete Clair, a trama marcou a aproximação de Arlete com o humor em telenovelas. “Não tinha consciência de que eu era uma comediante, mas eu devo ter inspirado os autores com quem trabalhei. Até porque sou geminiana, uma pessoa que leva a vida com mais leveza e otimismo.” Ela, porém, já se preocupou por ser vista como humorista.

“Eles não têm o mesmo prestígio que os chamados atores sérios. Mas fui em frente com orgulho de ser reconhecida como uma comediante”, diz a atriz. “A comédia é a forma mais elegante de falar de coisas sérias.”

Foi isso o que ela fez ao dar vida à Copélia, personagem espevitada e fogosa de “Toma Lá, Dá Cá”, série de Miguel Falabella exibida na Globo entre 2007 e 2009.

É uma personagem que renovou seu público e subverteu uma série de pressupostos sobre mulheres que chegam à terceira idade. Um deles é o de que esse grupo precisa renunciar à vida sexual em favor do celibato. Copélia não apenas aceitava seu desejo, como não tinha medo de afirmá-lo publicamente.
“Miguel usou essa personagem exatamente para drenar a intolerância que existe em relação à sexualidade das pessoas com mais idade.”

De certa forma, Copélia encarou o etarismo em um momento em que o preconceito contra pessoas idosas nem tinha um nome. O problema atinge sobretudo mulheres, contra as quais imposições estéticas recaem de maneira mais severa.

“É grande o número de atrizes que vão envelhecendo, mas que não se afastam do meio. Elas são afastadas da profissão”, diz Arlete, que tem 85 anos. “Elas são postas nos bastidores e ficam isoladas nesse lugar, que vai se estreitando cada vez mais. São enormes as queixas de desvalorização.”

Ela diz que é um contrassenso lançar atrizes mais velhas na invisibilidade. Isso porque essas profissionais são donas de um grande domínio técnico em razão da experiência.

“A idade traz conhecimento sobre a profissão e isso é importante em qualquer área. Eu me sinto mais confortável em cena nesses últimos anos.”

É uma confiança que tem colocado Arlete nas alturas. Em dezembro, ela gravou cenas de “Família É Tudo” no topo do edifício Mirante do Vale, que tem 51 andares e fica no centro da capital paulista.

Debaixo de um sol inclemente, a atriz vestia um macacão cor-de-rosa e se preparava para uma cena em que Frida desce o prédio de rapel. A passagem foi gravada com o auxílio de uma dublê. “Estou muito mais segura e confiante. Isso traz uma certa qualidade ao meu trabalho.”

Ela, porém, não idealiza a velhice. “Envelhecer não é bom. Não é bom fisicamente, não é bom emocionalmente. Mas a festa não acabou. Podemos tomar um drinque e dar uns volteios.”

Ao longo da carreira, Arlete se tornou a musa de alguns autores. Além de Copélia, Falabella a escalou para viver a Anabel Muñoz, de “Salsa e Merengue”, em 1996. O papel lhe rendeu o prêmio de melhor atriz da Associação dos Críticos Teatrais de São Paulo.
Depois, chamou a artista para atuar nas peças “A Vida Passa” e “A Partilha”, espetáculo que ficou seis anos em cartaz e foi visto por mais de um milhão de pessoas.

Arlete também firmou uma longa parceria com Aguinaldo Silva, com quem trabalhou em novelas como “Fera Ferida”, “Pedra sobre Pedra”, “Porto dos Milagres” e “Fina Estampa”.

Para conquistar esse currículo volumoso, ela precisou fazer frente ao preconceito. Natural de Paudalho, a cerca de 50 quilômetros de Recife, sonhava em ser artista ainda criança.
“Eu fugia de casa e ia para rádios assistir aos programas. Até que eu vi uma chamada para fazer um teste.” Não foi aprovada, mas a convidaram para trabalhar como locutora. Em 1958, entrou para a Companhia Barreto Júnior, na qual estreou da dramaturgia com a peça “A Cegonha se Diverte”.

Depois, começou a fazer teleteatros na TV Tupi de Recife, mas decidiu se mudar para o Rio de Janeiro em busca de mais oportunidades.

Foi nesse período que se viu alvo de piadas por ser nordestina. “Antigamente, quando eu cheguei aqui, o humor era calcado na nossa forma de falar. Comecei a sofrer bullying.”

Arlete lembra que, quando passavam por ela, imitavam sotaque de pessoas do Nordeste. “Diziam: ‘Oi, bichinha! Ôxente!’ No início, é engraçado. Depois, fica cansativo.” Decidiu então neutralizar o sotaque para evitar as gozações.

Esse cenário começou a mudar em 1989, quando deu vida à meiga e virginal Carmosina na novela “Tieta”, de Aguinaldo Silva. Como a trama era ambientada numa cidade fictícia do Nordeste, pôde dar vazão a seu modo de falar.

“Foi a primeira vez que libertei o meu ser mais íntimo, a minha nordestinidade. A partir dali, não deixei meu sotaque me aprisionar. Ele é o meu jeito. É o meu charme.”

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